São Paulo, sábado, 9 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dentes de cavalo

JOSUÉ R. S. MACHADO

JOSUÉ MACHADO
O título de um simpático anúncio feito para vender automóveis era o seguinte: "Cavalo dado se olha os dentes". O redator fez alguma ginástica para relacionar carro, cavalo e presente e talvez tenha conseguido. Mas a inversão de sentido do provérbio só teria ficado perfeita se o redator não tivesse se distraído ou faltado à aula de concordância verbal. Foi aquela aula em que o professor deu o velho exemplo: "Alugam-se casas", igual a "Casas são alugadas". Pode-se atualizar um pouco o exemplo: "Vendem-se deputados", igual a "Deputados são vendidos".
Por que será que o redator escreveu dentes no plural e manteve olha no singular? Só porque o sujeito vem depois do verbo? Teria fica perfeito assim: "A cavalo dado se olham os dentes", embora o provérbio seja conhecido com sujeito e verbo no singular: "A cavalo dado não se olha o dente".
O que importa, no entanto, é o seguinte: sujeito no singular, verbo no singular; sujeito no plural, verbo no plural, tanto faz o que apareça primeiro na frase, como aprendemos nos melhores anos de nossas vidas.
Há um modo simples de resolver casos de estruturas como essas, dos dentes cavalares e dos deputados vendidos. Quando o verbo vem seguido do se e de um substantivo, o substantivo quase sempre é sujeito; se ele estiver no plural, exige o verbo no plural; se no singular, o verbo fica no singular. Assim: "Perfura-se poço", igual a "Poço é perfurado"; "Perfuram-se poços inocentinos", igual a "Poços inocentinos são perfurados"; "Arrendam-se mandatos", igual a "Mandatos são arrendados"; "Absolvem-se fiuzas", igual a "Fiuzas são absolvidos".
Nem é preciso lembrar que na brincadeira do anúncio com o provérbio faltou a preposição: "A cavalo dado não se olham os dentes", um galicismo, aliás, porque no caso o "a" tradicional do provérbio equivale a de: "De cavalo dado não se olha o dente". O redator poderá alegar que preferiu uma elipse, que a preposição está subentendida. Tudo bem, porque Raimundo Magalhães Jr. registrou uma variação do provérbio também sem a preposição, em seu "Dicionário de Curiosidades Verbais": "Cavalo dado não se abre a boca".
A propósito, é bom lembrar que esse provérbio não é produto da sabedoria nacional. Uma variação dele é conhecida nos países de língua inglesa e francesa há muito tempo, e sem erro de concordância: Never look a gift horse in the mouth. (Nunca olhe a boca de um cavalo dado). E na França: A cheval donné sa dent n'est pas regardée. (De cavalo dado não se olha o dente).
A idéia óbvia contida no provérbio, má tradução da variação francesa, pode ser ilustrada da seguinte forma: os brasileiros e brasileiras votam e esperam um estadista. O que recebem? Um José Ribamar, dito Sarney, e um marajá de olhos rútilos. Então dizem: "Obrigado, ó deuses, nós merecemos!"
E vem mais por aí.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

Texto Anterior: Unicamp conclui que abortos foram legais
Próximo Texto: Cabos eleitorais do PP fazem greve
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.