São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Viagem sem fim

MOACYR SCLIAR

Houve um momento –o avião a mais de 8.000 metros de altura, a temperatura abaixo de 40 negativos– em que ele, o corpo congelado e a mente entorpecida, teve uma visão:
Acima de sua cabeça, no estreito compartimento do trem de pouso do Boeing, uma portinhola se abriu. Surpresa: não tinha notado tal portinhola antes. Surpresa ainda maior: uma voz de mulher, uma voz meiga e suave se dirigiu a ele:
– Mas o que é que o senhor está fazendo aí fora? Seu lugar é aqui dentro, você não sabia?
Ele segurou a mão que se estendia em sua direção e, com algum esforço, içou-se para dentro do avião. Várias pessoas ali, senhoras e cavalheiros elegantemente vestidos, todos a olhá-lo, sorrindo.
– Benvindo ao vôo 927, disse a simpática aeromoça.
– O comandante e a tripulação sentem-se honrados em ter o senhor a bordo.
Confuso, mas encantado, ele perguntou se podia sentar: estava muito cansado.
– Pode sim, respondeu a moça.
– Mas não aqui. Temos uma poltrona reservada para o senhor na primeira classe. Acompanhe-me, por favor.
Ele seguiu-a e foi instalado na confortável poltrona, a aeromoça recomendando-lhe que apertasse o cinto, por causa de possíveis turbulências. Outra aeromoça perguntou se aceitava uma taça de champanhe e canapés. Ele não sabia o que era champanhe e nem canapés, mas, como era bem educado, aceitou, e era realmente uma delícia, aquilo. De repente, surgiu-lhe uma dúvida inquietante: e se tivesse de pagar por aquele conforto todo? Tudo que possuía na vida era um radinho, que não pagaria nem um canapé. Resolveu, portanto, perguntar à aeromoça quanto devia. Ela sorriu:
– Nada. O senhor não deve nada. O senhor é nosso hóspede nesta viagem.
O que era ótimo. Mas havia ainda uma outra dúvida: para onde estava indo aquele avião? Onde pousariam? De novo, a aeromoça sorriu:
– Este avião não vai para lugar nenhum. Ele fica voando, voando, enquanto os passageiros tomam champanhe, comem canapé e se divertem. É a viagem sem fim, nunca ouviu falar disto?
Não, ele nunca tinha ouvido falar. Mas lhe servia, claro que lhe servia: uma viagem sem fim, com champanhe, canapés e muito divertimento? Não queria outra coisa. Melhor que aquilo, só o céu. Ao qual ele nunca chegaria: neste momento, o avião já pousava.

Texto Anterior: Topo Gigio liderava audiência na TV; Beto Rockfeller muda telenovela; Escritor japonês comete o haraquiri; Rita Lee diz que a política está errada
Próximo Texto: Alienados 'caçam' salas de cinema na hora do jogo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.