São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
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Uma agenda para o trabalho

EDWARD J. AMADEO

Agradeço o professor Pastore pela elegante resposta ao meu artigo "O consenso sobre os encargos sociais" (Folha de 04/06/94), onde mais que nada ele reafirma os pontos da sua entrevista à Folha, que deu origem aos meus comentários.
Ao final de meu artigo, deixei claro que a discussão sobre a flexibilização do trabalho no Brasil era importante, mas que não deveria ser confundida com a demanda pura e simples por redução dos chamados encargos sociais. Mais uma vez o professor Pastore confunde as discussões sobre encargos e flexibilização. Prefiro separá-las.
"Quando a empresa contrata um trabalhador por 100 unidades de salário, ela sabe que terá que desembolsar 202", diz o professor Pastore em seu artigo. Discordo marginalmente dos números.
Meu principal argumento é outro: dos 102 extras que a empresa paga, mais ou menos 70 vão para as mãos do empregado. Isto significa que, dos 202, 170 representam a remuneração do empregado.
Logo, a demanda por redução de encargos ou se refere ao que vai para o Estado –30 dos 202–, ou se refere à redução do salário do empregado. É preciso que o professor Pastore deixe claro o que tem em mente.
É claro que podemos pensar em formas para desonerar a folha de salários. Isso se refere tão somente aos 30 que vão para o Estado, que poderiam ter origem num imposto sobre o faturamento e não sobre a folha.
Nesse caso, as grandes empresas, cuja relação faturamento/folha é muito maior que nas pequenas empresas, passarão a pagar mais impostos. As pequenas pagariam menos. Uma boa idéia.
O professor Pastore argumenta que os encargos são responsáveis pela informalidade do mercado de trabalho. Por mais atraente e difundido que seja o argumento, quero dizer que não há evidências empíricas a seu favor.
Suponhamos que a empresa só pode pagar um total de 180 entre salários e encargos. Ela poderia pagar 90 em carteira, mais 63 ao trabalhador (total 153) e recolher 27 ao governo.
É claro que ela pode preferir não recolher nem um tostão ao governo e pagar 180 ao trabalhador. Agindo assim, remunera seus trabalhadores melhor que a empresa que paga 170 e recolhe 30. Sonegar é sempre uma opção, principalmente se não houver fiscalização ou se os fiscais forem corruptos.
Mas será mesmo que as empresas que sonegam pagam salários mais altos, como faz crer o argumento e o exemplo citados? Não. Os trabalhos do professor Ricardo Paes e Barros, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), no Rio, mostram que, quando comparados os salários de trabalhadores com as mesmas características (educação, sexo, idade e região), ganham mais os trabalhadores de empresas que assinam a carteira de trabalho.
Estas empresas pagam os encargos e, além disso, pagam salários em carteira mais altos. Não é verdade, portanto, que as empresas deixam de pagar encargos para pagar salários mais altos. A informalidade não decorre dos encargos.
Como já disse antes, é preciso diferenciar a discussão dos encargos da discussão sobre a flexibilidade do trabalho. O que significa flexibilidade?
Flexibilidade significa tornar o mercado de trabalho e o trabalhador mais adaptáveis a mudanças na tecnologia, no nível de atividades e na composição setorial da demanda. Com mais flexibilidade, os custos sociais dos ajustes a estas mudanças são menores.
Há diferentes maneiras de obter flexibilidade. Uma é dando às empresas o direito de demitir sem custos e sem interferência dos sindicatos e reduzindo o número de leis que regem a relação de trabalho. Este é o sentido convencional de "flexibilidade" e o sentido usado pelo professor Pastore.
Ocorre que este tipo de flexibilidade, em que a empresa pode admitir e demitir livremente e em que a rotatividade do trabalho é alta, gera uma situação em que as empresas não têm incentivos para investir em formação e treinamento e os trabalhadores não têm compromissos com os objetivos da empresa.
Este tipo de relação entre empresas e empregados reduz outras fontes de flexibilidade, associadas à capacidade do trabalhador de adaptar-se a mudanças. Simplesmente porque a adaptabilidade requer trabalhadores educados, treinados e comprometidos com a empresa.
De fato, há dois modelos de flexibilidade. Um "modelo liberal" –do qual o professor Pastore é adepto–, que se baseia na desregulamentação do mercado de trabalho, na descentralização das negociações e na redução do papel dos sindicatos.
Um "modelo social-democrata", que valoriza a negociação em diferentes níveis entre patrões e trabalhadores, como forma de flexibilizar o trabalho e aumentar o grau de cooperação entre empresas e empregados.
O modelo liberal entrou na moda na década de 1980. Hoje, há inúmeros estudos sobre a reforma liberal na Inglaterra e outros países e a conclusão é triste, o que já torna o modelo um tanto "demodé".
Não melhorou a situação macroeconômica e a dispersão salarial cresceu muito na Inglaterra. Os EUA, que sempre tiveram um modelo liberal, apesar de conseguirem gerar mais empregos que qualquer outro país rico, têm péssimo desempenho no que se refere ao crescimento da produtividade do trabalho e enorme dispersão salarial. Por isso, o ministro do Trabalho, Robert Reich, tem insistido em mudanças de natureza social-democrata.
Já tive oportunidade de argumentar em outros trabalhos que existem diferentes modelos de mercado de trabalho. É preciso escolher entre eles. Dada a situação brasileira, em que a criação de empregos em si não é um problema, mas a qualidade dos empregos e da relação capital-trabalho é péssima, tenho me convencido de que a opção social-democrata é a que melhor frutos traria.
Isso não significa que o mercado de trabalho no Brasil não seja demasiadamente regulamentado. É muito regulamentado e a Justiça do Trabalho tem poder normativo, o que reduz muito o espaço de negociação entre patrões e empregados.
É preciso desregulamentar, mas, simultaneamente, aumentar o escopo de negociação.
Sendo assim, reduz-se o papel da lei (da Consolidação das Leis do Trabalho e da política salarial, por exemplo) e em seu lugar introduz-se negociações diretas entre patrões e trabalhadores.
Mas não negociações em nível de empresas apenas, porque a maior parte dos trabalhadores no Brasil não está organizada para negociar e tem seus direitos regidos pela CLT. Para estes, a descentralização das negociações e eliminação da CLT representariam uma enorme perda.
Minha proposta é que a negociação de condições básicas de trabalho e reposição salarial se dê em nível nacional, depois setorial, depois nas empresas.
Este é o modelo social-democrata que permite coordenação na formação de salários e preços e reduz a dispersão salarial.
Ao contrário do que se imagina, o desempenho macroeconômico (medido pela inflação e o desemprego) é melhor e a distribuição dos salários é muito mais igualitária em países em que as negociações são centralizadas, ou, pelo menos, sincronizadas no tempo, como no Japão.
O princípio básico da proposta é que a flexibilização não advém da ausência de regras nem do enfraquecimento de uma das partes negociantes, mas de regras negociadas e que, portanto, tenham legitimidade.
Há outros ingredientes desta proposta que eu gostaria de ver comentados pelo professor Pastore.
Em primeiro lugar, é importante que haja redução do poder normativo da Justiça do Trabalho, que inibe a negociação direta.
Em segundo lugar, é preciso que o imposto sindical seja abolido, uma vez que este imposto está na raiz do peleguismo patronal e trabalhista, que reduz muito a representatividade dos sindicatos.
Em terceiro lugar, é preciso que os trabalhadores passem a ter representação formal dentro das empresas, independentemente da organização sindical.
Por último, é preciso que os recursos do Senai, Sesi e Sebrae tenham administração tripartite, envolvendo trabalhadores, patrões e o governo. Isto porque estes fundos deveriam ser a base de financiamento das políticas de mercado de trabalho no Brasil e, num contexto mais negocial, deveriam contar com a participação dos trabalhadores na sua gestão.
Esta é a agenda para o trabalho que proponho, a fim de flexibilizar o trabalho no Brasil. Flexibilização civilizada, como quer o professor Pastore, mas negociada.

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