São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
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O fim do triunfalismo neoliberal

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O triunfalismo neoliberal está morto no Leste europeu. Em toda a região, vemos o abandono da utopia neo-conservadora visando o Estado mínimo em favor de uma perspectiva social-democrática e pragmática, segundo a qual o melhor caminho para o capitalismo é o fortalecimento do aparelho do Estado e a revalorização da sua burocracia (1).
A transição para a democracia foi realizada, reformas orientadas para o mercado continuam a se constituir na estratégia econômica fundamental, mas as elites do Leste europeu estão crescentemente convencidas de que a forma de consolidar o capitalismo e a democracia não é desmantelando o Estado, mas reconstruindo-o em novas bases.
Na América Latina, as idéias neoliberais não sofreram derrota tão grande, mas, na verdade, elas nunca tiveram verdadeiro apoio das elites locais, cujo conservadorismo é mais tradicional e realista. Medidas de reajustamento estrutural –isto é, políticas de ajustamento fiscal somadas a reformas estruturais como a privatização, a liberalização comercial e a desregulação– foram tomadas, mas mesmo no Chile, onde o neoliberalismo foi dominante durante um certo período, no regime militar, o governo não adotou uma estratégia plenamente neoliberal. As minas de cobre continuaram propriedade do Estado, o qual conservou muitas das suas funções sociais.
Ora, o neoliberalismo é um liberalismo radical e anti-social. É a concepção de intelectuais conservadores e utópicos, que reagiram às distorções e à crise do Estado de forma exagerada. Enquanto é possível pensar em um liberalismo social, que se aproxima da social-democracia –para isto basta ler Bobbio– o verdadeiro neoliberalismo é contrário a qualquer tipo de intervenção do Estado, inclusive no campo social. Tudo deve ser privatizado, inclusive educação e saúde. E tudo deve ser sacrificado ao "estímulo à iniciativa individual", que seria indevidamente obstaculizada por impostos de renda progressivos e por gastos sociais protegendo os pobres.
A tais exageros não chegou sequer o Consenso de Washington, apesar de sua óbvia inspiração neoliberal. Ao definir, em 1989, esse consenso, John Williamson, traduzindo a visão dominante em Washington naquele momento, que era ainda fortemente conservadora dado o domínio republicano, mesmo assim reservou para o Estado papel importante na educação, na saúde e nos investimentos de infra-estrutura. (2)
No Leste europeu, esse neoliberalismo mitigado entrou em colapso. Políticos e burocratas que participaram do regime comunista transformaram-se em social-democratas e agora estão ganhando eleições e reassumindo o governo. A queda do neoliberalismo foi grande porque o entusiasmo com ele foi muito forte. Grandes alturas em um momento podem significar grandes quedas no outro. Quando o Estado começou a ser desmantelado em nome de uma crença ilimitada no mercado, este revelou-se incapaz de funcionar por si só. Desemprego crescente e taxas de crescimento negativas prevaleceram, demonstrando mais uma vez que os mercados só são eficientes em alocar recursos quando são complementados por um Estado economicamente forte.
A estratégia neoliberal apontava na direção correta quando propunha a adoção de reformas orientadas para o mercado, mas era utópica quando visava o Estado mínimo, e voluntarística quando pressupunha que reformas estruturais poderiam ser implementadas da mesma forma que usualmente se estabilizam altas inflações: através de terapias de choque. O gradualismo é ineficiente senão ineficaz para estabilizar economias em hiperinflação, da mesma forma que a política de choque, de big-bang, é inviável para a realização de formas estruturais, particularmente para privatizar.
A crise do Estado
É preciso salientar que a popularidade inicial das idéias neoliberais tinha sua razão de ser. Elas entraram em desfavor porque eram irrealistas, mas antes elas ganharam força porque elas traziam consigo uma crítica correta das distorções que o Estado havia sofrido depois de mais de 50 anos de enorme crescimento.
Desde os anos 30, o aparelho do Estado cresceu em todo o mundo. Cresceu para promover industrialização forçada, para estabelecer o Estado do bem-estar, para implementar e coordenar políticas macroeconômicas mais efetivamente. Esse crescimento foi inicialmente bem sucedido, estimulando crescimento adicional. Mas sucesso leva também ao afrouxamento dos controles, à prevalência dos grupos de interesse, ao "rent-seeking" (ou seja, à obtenção de rendas que não se devem ao trabalho ou ao capital, mas ao poder de monopólio privado ou à capacidade de obter subsídios e outras vantagens do Estado). Afinal, o sucesso inicial levou mais adiante à crise do Estado, que é causa básica da crise econômica do último quartel deste século (3).
Já nos anos 70 as economias capitalistas centrais, que haviam crescido extraordinariamente no após-guerra, entraram em crise, viram suas taxas de desenvolvimento desacelerarem. Era a crise do Estado e, particularmente, da sua forma de intervenção –o "welfare state"– que se manifestava, ao mesmo tempo que os países desenvolvidos enfrentavam dificuldades fiscais crescentes. Como, em seguida ao primeiro choque do petróleo, em 1973, iniciaram severo processo de ajustamento, a crise fiscal do Estado não é tão clara. Mas não há dúvida de que por trás da desaceleração das taxas de crescimento estava a crise do Estado.
Esta crise, entretanto, só vai se tornar clara para os próprios países centrais nos anos 80, quando a América Latina e o Leste europeu, que nos anos 70 mantinham as taxas de crescimento graças ao endividamento externo, entram em uma crise muito mais profunda: uma crise do Estado –uma crise fiscal e uma crise do modo de intervenção do Estado.
As estratégias originais de industrialização, tanto na América Latina –a substituição de importações– como no Leste Europeu –o estatismo comunista– haviam perdido sua própria razão de ser, não apenas porque haviam sido distorcidas pelos interesses especiais de burocratas e de empresários, mas também porque o ambiente internacional transformara-se, e as coalizões de classe que as sustentavam entraram em colapso (4). Dessa forma, a crise fiscal, definida pela perda do crédito público, por poupanças públicas negativas, por elevados déficits públicos e por endividamento público crescente, tornava-se um fenômeno generalizado e óbvio nas duas regiões.
A reconstrução
O fim do triunfalismo neoliberal não significa que a América Latina e o Leste europeu voltarão aos anos 50. Os tempos do estatismo e do nacional-desenvolvimentismo pertencem ao passado. As propostas de se insular a burocracia das pressões políticas, que vemos hoje no Leste europeu, e o recrudescimento de idéias populistas e corporativistas, que hoje se nota na América Latina, não devem sem sobreestimadas. Elas têm fôlego curto. A intervenção do Estado tem um caráter cíclico, mas a história não se repete.
A tarefa fundamental continua a ser a de reformar o Estado, isto é: 1º) adotar políticas de ajustamento que superem a crise fiscal e reconstituam a poupança pública; e 2º) implementar reformas econômicas orientadas para o mercado, privatizando, desregulamentando e liberalizando o comércio. O resultado deverá ser um Estado menor mas mais forte, no qual uma tecnoburocracia revigorada terá novamente um papel positivo, ao lado das elites econômicas e políticas, cujas limitações são bem conhecidas.

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