São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
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'Informação não é poder'

CARLOS NADER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos mais conhecidos especialistas da Internet é o escritor Bruce Sterling. Ele foi um dos primeiros a prever um mundo pós-Guerra Fria onde o cerne da luta pela hegemonia mundial migrava da ameaça de uma Terra coberta pela explosão de cogumelos nucleares para a disputa de um lugar ao sol, ou à sombra, dentro do território virtual.
Além de "Islands in The Net" (Ilhas na Net), traduzido inacreditavelmente no Brasil para "Piratas de Dados" (editora Aleph), Bruce Sterling escreveu mais quatro romances de ficção científica, um deles, "The Difference Engine", em parceria com o outro papa do cyberpunk, William Gibson. O último livro de Sterling, "Hacker Crackdown", é um grande ensaio sobre o futuro da Internet.
Depois da experiência pela não ficção, ele diz, em entrevista à Folha, por telefone, de São Francisco (EUA): "Chega de reportagem. Quero voltar correndo ao meu primeiro amor, a ficção científica".

Folha - O copyright dentro da rede ainda é uma questão não regulamentada. Você colocou na Internet o seu último livro, "Hacker Crackdown", onde as pessoas podem copiá-lo sem custo. Isto gerou alguma polêmica e você afirmou que o seu editor não possuía os direitos eletrônicos do livro...
Bruce Sterling - Eu escrevo livros e sou pago para escrever livros. E o meu editor vende meus livros para as livrarias e as pessoas compram meus livros com dinheiro. Mas se você for a uma biblioteca você pode conseguir meus livros e eu não ganho um tostão com isso. Se você for a um sebo, você compra meus livros pela metade do preço e eu também não ganho nada com isso.
Você vê, só aí já existem três tipos de economia no ramo da edição. Você tem o comércio normal, tem a distribuição socializada de informações e tem este mercado cinzento de livros de segunda mão, ou vendidos de mão em mão. E fora isto, existe este mercado de colecionadores onde um livro meu pode ser vendido por US$ 150 porque é de uma edição rara e eu nunca vejo a cor do dinheiro. E mesmo assim eu não acho que seja o fim do mundo!
Eu não vou declarar guerra aos sebos, nem vou tacar fogo em bibliotecas por que elas são uma ameaça ao meu rendimento. Todos os mercados coexistem com tranquilidade.
Folha - A Internet vive um momento crucial. Há uma guerra entre os que defendem uma rede sem fins comerciais, e outros que preferem vê-la transformada num grande shopping eletrônico. Era a isso que você se referia em "Hacker's Crackdown", quando disse que "era o fim dos amadores"?
Sterling - Quando escrevi isto, eu tinha percebido que pela primeira vez as pessoas iam poder usar a rede profissionalmente. A Internet está se profissionalizando porque há muito mais dinheiro e poder envolvidos. Não é mais um hobby, é algo com o qual você pode ganhar a vida.
Você pode até ficar milionário usando um BBS. Onde houver renda disponível, as pessoas vão deixar de encarar como uma coisa de fim de semana e vão passar a fazer todo dia. Eles vão acordar de manhã e é a primeira coisa que eles vão fazer depois de tomar café (risos). E este é "o fim dos amadores"... Mas as duas tendências, mais e menos comerciais, vão coexistir na Internet como em qualquer outra mídia.
Folha - As tecnologias de telecomunicações estão levando a nossa civilização a um nível de virtualidade único na história das relações humanas, que inevitavelmente abala nosso sentido de realidade. O que você acha que vai acontecer num primeiro momento com o nosso sentido de realidade?
Sterling - Sabe, eu já vi este assunto discutido muitas vezes. Se você pensar na coisa de maneira teórica vai parecer mesmo que há muitos danos possíveis à questão da identidade, mas, na minha experiência pessoal, eu acho que isso quase nunca acontece de fato. Por exemplo, eu acho que eu nunca fui chamado por alguém que não era quem ele estava dizendo que era.
Eu ressaltaria ainda que o simples fato de você estar vendo Bruce Sterling em pessoa também não garante que realmente é Bruce Sterling (risos). Pensa bem, quantas vezes você não teve a seguinte experiência. Você sabe de alguém que é uma figura muito impressionante, um político importante, um acadêmico, ele é alguém que disseram que é importantíssimo e aí então você vai lá, conhece o cara e percebe que não tem nada ali...
Folha - É engraçado reparar que a maior parte deste questionamento teórico vem da Europa, sobretudo da França. As Américas se adaptam mais fácil. E eu penso no Candomblé, por exemplo, onde o mundo das visões, das incorporações são tão reais quanto qualquer outra coisa, e não há o menor problema.
Sterling - Concordo. Aqui nos Estados Unidos nós tivemos um presidente que era um ator de Hollywood. Ele era um total simulacro e ao mesmo tempo um rapaz muito popular (risos)... Nós sobrevivemos à experiência, e os Estados Unidos continuam aqui. A realidade não vai ser destruída. As pessoas acordam de manhã, a chuva cai, o planeta gira em torno do sol, as leis da gravidade de Newton ainda servem... Cadê o problema? Eu sou uma espécie de determinista tecnológico. Acho que a melhor maneira de se adaptar é sair e comprar uma máquina.
Folha - Há a história, sempre repetida, de que a Internet não tem um centro de poder. Mas você não acha que num espaço não físico como o ciberespaço, o centro de poder não é um lugar, mas uma idéia, ou melhor, uma linguagem? E que tanto a língua inglesa quanto as linguagens de programação são coisas primordialmente americanas? Será que todos os supercaminhos da informação vão acabar levando à América virtual?
Sterling - Bom... sim (risos). Eu acho que você tocou numa idéia fundamental quando falou em linguagem. O ciberespaço é uma linguagem. É muito mais uma linguagem do que uma estrada ou uma rede. Tudo bem, concordo, todas os caminhos levam a Roma, se Roma é o centro do Império Romano. Mas quando o assunto é o latim, a coisa é um pouco diferente. A rede é o latim eclesiástico. É a linguagem da intelligentsia e da classe dominante, gerencial, que até um certo ponto é multinacional. A rede é inglês-de-rede (net english).
Folha - Os textos em português na rede quase sempre chegam truncados, porque os interfaces e programas de comunicação não entendem cedilhas, acentos...
Sterling - É muito difícil fazer qualquer coisa na rede que não em inglês. Os espanhóis até reformaram seu alfabeto. Eles retiraram dos teclados as letras "ll' e "ch". Eu concordo que também é um problema com português, acentos e tal, mas não é nada comparado com os problemas que têm os japoneses e outros países asiáticos, onde eles tendem a se especializar em fax. É preciso lembrar que a rede que nós temos é muito jovem, começou na década de 60.
Eu acho que não é preciso se preocupar muito porque a rede não vai ficar mais baseada em texto por muito tempo. Vai virar uma coisa muito mais parecida com a televisão. Ou talvez até mais como um videogame. Acho que ainda vai haver uma função para os textos, mas acho que vai ser parecida com a função que o texto tem na sociedade como um todo. A maioria das pessoas na nossa sociedade não está a fim de sentar em frente a uma tela e ficar olhando para palavras por horas e horas. Não é a mais popular das diversões (risos).
Para que a rede vire realmente popular, vai ter que ter muito mais imagens coloridas do que tem agora. Mas isto não quer dizer que o texto vai sumir. Ao contrário, vai continuar muito necessário para as leis, para a burocracia, para fazer o governo funcionar, para estudos científicos...
Folha - A criação de tecnologia de telecomunicação é uma avalanche. Se no passado informação era poder, agora parece que informação sobre informação vale muito mais. Você não acha que hoje em dia, mais importante que acumular informação, é saber editá-la?
Sterling - Acho que é uma afirmação equivocada dizer que informação é poder. Se fosse, os bibliotecários teriam dominado o mundo. Mas os bibliotecários têm muita informação e pouquíssimo poder. Acho que o que é importante é atenção. Atenção é poder.
Quem quiser sobreviver politicamente vai ter que ter a capacidade de pôr seu assunto na cara do público e convencer as pessoas a tentar entender o que está acontecendo. Os governos não estão fazendo muita coisa secreta hoje em dia. Isso pelo menos no Grupo dos Sete onde é difícil manter qualquer tipo de segredos. Mas eles são bem capazes de fazer coisas quando ninguém está prestando atenção. Atenção.

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