São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
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Novos sistemas, novos problemas

HERMANO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há algumas semanas, uma "revolução popular" eletrônica transtornou a vida das poucas centenas de pessoas que vivem no encrave deleuziano da Internet. Ninguém foi ferido, pelo menos não fisicamente.
Nenhum "corpo sem órgãos" (termo usado tanto pelas tropas rebeldes quanto pelos reacionários) foi encarcerado. Tudo aconteceu rapidamente, quase que imperceptivelmente. Mas a mudança –trazida pelos novos tempos revolucionários– foi surpreendente, e as lições que foram tiradas dela devem ser lidas como guias rodoviários para quem quiser trafegar pelas "information highways" que controlarão o futuro político-cultural-econômico do planeta.
Para entender o que realmente (ou virtualmente, se o leitor preferir) aconteceu, é necessário antes saber o que é uma mailing list, instrumento poderosíssimo de troca de informações dentro da Grande Rede. Traduzindo o mistério em linguagem semitécnica, pode-se dize que uma mailing list é um programa de computador que, com pequenas variações, nada mais faz do que enviar todas mensagens que recebe para todos os endereços eletrônicos de seus "assinantes".
Existem listas para todos os gostos. Eu, por exemplo, assino semanalmente uma lista dedicada a debater a obra de Brian Eno, outra sobre as relações entre a teoria do caos e a psicologia, e ainda outra sobre a filosofia de Gilles Deleuze. Foi nesta última que teve lugar a "revolução popular" de duas semanas atrás.
A lista deleuze é um subsoftware que funciona, há não mais de cinco meses, no computador que –dentro da Internet– tem o seguinte endereço: world.sdt.com. Nunca fui curioso o suficiente para saber em que cidade ou país ele está localizado. Isso é o que menos importa, pois tudo na Rede independe do espaço geográfico ou do regime político onde ficam os seus "nós". Mas o fato é que uma alma generosa separou vários megabytes de seu hard disk para o funcionamento de um grupo de mailing lists, chamado Thinknet, dedicado principalmente ao estudo das várias linhas filosóficas contemporâneas, com uma preferência especial por vedetes francesas pós-68.
A lista deleuze tem funcionado como um grupo de leitura do livro "Mille Plateaux". Do alto de minha experiência como voyeur de centenas de outras listas, posso dizer que é muito difícil encontrar um debate tão interessante quanto o travado por estes ciberdeleuzianos.
Talvez a qualidade da troca de idéias se deva à maneira pela qual a lista está organizada. A Internet promete muito (ou nós esperamos) e cumpre pouco. O principiante espera encontrar logo uma turma de hackers incríveis, totalmente sintonizados com suas paixões mais "sofisticadas", com os biscoitos finos que –dizem muitos dos apologistas da comunicação por computador– as mídias de massa sempre recusam. É ruim! Saber como ligar um modem na linha telefônica não é nenhuma garantia de "mentalidade mais elevada" do que a de um fã de Gugu Liberato.
O contrário é muitas vezes até mais verdadeiro: o fã do Gugu pode dar um banho de inteligência em muita gente que envia mensagens, todos os dias, para –por exemplo– a lista "alt.cyberpunk" da Usenet (o maior conjunto de mailing lists da Internet).
Mesmo correndo o risco de ser acusado de tecnoconservadorismo, tenho que declarar que as melhores listas são as moderadas. Os moderadores surgiram justamente para tentar conter o desperdício de "largura de banda" que engarrafa –com mensagens idiotas e brigas enfadonhas conhecidas como "flames" –os cabos de fibra ótica da espinha dorsal da Internet. E pior: as "flames" inundam com gigabytes de lixo as caixas postais de usuários bem-intencionados que, traumatizados, nunca mais ligam seus modems ou cancelam suas assinatura de listas para as quais poderiam dar importantes contribuições.
O difícil é estabelecer os limites para a atuação moderadora. Alguns list-owners são ditadores extremistas: só são distribuídas na Rede as mensagens que julgam apropriadas. Outros moderadores, melhores, se contentam com um poder sutil. "Conduzem" a conversa e tentam encontrar maneiras para contornar eventuais problemas. Era isso que acontecia na lista deleuze. Até algumas semanas atrás.
Como definir, dentro da lista, uma situação problemática? Esta definição depende apenas da sensibilidade do moderador ou de uma opinião mais geral, da "comunidade" dos assinantes de cada lista? Através de quais mecanismos políticos a "comunidade" pode tomar uma decisão? Voto? E como se define quem tem o direito de votar? Como se vota? Na Internet, por colocar em contato diário pessoas com sensibilidades, backgrounds culturais e filosofias políticas bem diferentes, essas questões de definição sempre alimentam debates irritantemente minuciosos.
A comunicação via rede de computadores é uma novidade para todo mundo. A estrutura técnica da Internet, totalmente descentralizada e contra qualquer tipo de censura, é uma espécie de experiência civilizatória num território selvagem. Não existem regras gerais de convivência. Essas regras são criadas a cada interação.
A lista "deleuze" tinha um moderador interno, mas também era vinculada a um supermoderador, responsável por todas as listas da Thinknet. Este último resolveu intervir numa determinada discussão, condenando-a por ser "poética" e ter pouca relação com a filosofia de Deleuze. Sua intromissão paralisou a lista. Uma enxurrada de mensagens atacaram a atitude "ditatorial" do supermoderador.
Resultado: o moderador da lista "deleuze" (sem consultar a comunidade) formou uma "frente rebelde" com o moderador da lista "avant-garde" (que ultimamente tem se dedicado a discutir o pensamento do anarquista Hakim Bey, a estrela do anarquismo novaiorquino) e deu um golpe de Estado eletrônico, criando um subprograma para suas listas dentro do computador world.std.com, independente do resto das listas da Thinknet.
O supermoderador, sentido com o golpe (quase todo mundo na Internet tem os nervos à flor da pele), resolveu, em represália, interromper –"temporariamente"– a atividade das outras listas da Thinknet, inclusive as que tratam de sua especialidade teórica: –ironia!– a auto-organização e o caos.
É interessante ver toda esta trama se desenrolar dentro de uma lista deleuziana. A Internet pode ser pensada como um exemplo mais que perfeito dos rizomas tão elogiados pela dupla Deleuze/Guattari. As ironias (ou pseudo-ironias) se amontoam: a maquinação rizomática da Internet foi criada por militares americanos obcecados com o comunismo.
Mas não é sempre assim? A centralização não vai sempre conviver com as tendências descentralizadoras e vice-versa? A produção do corpo sem órgãos não traz sempre consigo o risco de descambar num buraco negro fascista?
É ilusão pensar que a Internet vai resolver todos os problemas políticos e culturais com a construção do paraíso anarquista virtual. O ciberespaço não é melhor nem pior do que nosso mundinho real.
Na Internet, por mais descentralização e desterritorialização que incentive, sempre vai existir gente chata, autoritarismos de todas as espécies. A interatividade não é o fim do problema, mas apenas uma maneira diferente de lidar com ele. Assim como o ciberespaço é apenas um mundo diferente. Mas –certamente– é mais espaço. E quanto mais espaço melhor.

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