São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
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A inversão do platonismo

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

E só no século 18 que a estética –por meio de uma série de estudos que têm na Terceira Crítica de Kant o seu ápice– instaura-se programaticamente como uma esfera separada do mundo ético e teórico. Isto não significa, evidentemente, que antes dessa compreensão afirmativa da autonomia das artes os fenômenos artísticos e a beleza não fossem tema de meditação para artistas e filósofos. São exatamente a riqueza e a profundidade destas reflexões que Erwin Panofsky resgata em }Idea: a Evolução do Conceito de Belo.
Para elaborar um panorama histórico desse período, Panofsky adota como fio narrativo e princípio heurístico um recorte determinado –o acompanhamento da inversão do conceito platônico de Idéia levado a cabo, desde Cícero, por várias filosofias e pelas teorias das artes plásticas que surgem no Renascimento–, privilegiando uma das duas vertentes predominantes na concepção estética ocidental: a teoria das Idéias. Deixa em aberto e de certo modo sugeridas a possibilidade e a necessidade de uma história da outra vertente, a teoria da imitação, o que foi realizado, à sua maneira, no registro da representação literária, por }Mímesis de Erich Auerbach.
Em Platão o valor da criação artística determina-se pelo seu valor enquanto parte de uma investigação teórica que tem como objetivo a contemplação de Idéias puras e eternas. Medidas pela conformidade com as Idéias, as artes plásticas –tomadas como imitação da realidade– representam uma realidade de terceira ordem: cópia de uma natureza que, por sua vez, já era uma versão empobrecida das Idéias. A condenação platônica das artes, uma decorrência lógica do seu conceito metafísico e supraceleste de Idéia, não impediu entretanto que a noção de Idéia fosse retomada, em diferentes momentos e sob formas distintas, como veículo para a expressão de reflexões estéticas e até de apologias da arte.
Segundo Panofsky, esta associação indevida, ou melhor, o giro antiplatônico do conceito de Idéia, inicia-se com Cícero, cujo ecletismo, tomando a Forma platônica num sentido quase aristotélico, não só favorece a queda da Idéia filosófica da condição de essência metafísica para a mera condição de conceito (de um lugar supraceleste para a consciência humana) como também promove a elevação do objeto artístico de imitação de uma realidade exterior e sensível à condição de representação imaginativa, interior e mental (traduzindo em termos filosóficos, uma mudança social na recepção artística e no estatuto do artista).
Se Cícero e Sêneca desvirtuam a Idéia platônica para possibilitar a sua identificação com a representação artística, Plotino e o neoplatonismo vão resgatar a dignidade metafísica da Idéia sem, no entanto, deixar de associá-la com a representação e a criação estética. Longe da rigidez platônica, as Idéias, reveladas ao artista num ato de intuição intelectual, conservam seu estatuto de existência supra-real e supra-individual.
Essa elevação, ao conceder a arte como }heurésis (invenção), por um lado, gera um arsenal teórico que irá reaparecer sempre que a prática artística dominante for acusada de "naturalismo", de tal modo que a evolução histórica do conceito de belo relatada por Panofsky será, em certa medida, também uma história da emergência e da desaparição de um neoplatonismo que se conserva, por largos períodos, subterâneo. Por outro lado, ao conceber a irradiação da Idéia através da matéria como um triunfo da Forma sob o informe, gera um conflito entre forma e matéria, força e inércia, beleza e feiúra, bem e mal, que acaba –como a teoria da mímesis platônica, ainda que por motivos diferentes–, por colocar a arte sob suspeição.
Sabemos, pela história da arte, que o Renascimento volta-se contra a Idade Média, adotando como palavras de ordem o retorno à Antiguidade e uma nova aproximação da realidade. Nesse sentido, a dupla exigência renascentista de fidelidade à natureza e de beleza, que prega o confronto com a realidade seja para imitá-la, seja para corrigí-la, destoa da percepção do neoplatonismo cristão –em que o espírito criador impessoal cede lugar ao Deus pessoal e a filosofia da razão humana converte-se numa espécie de lógica do pensamento divino– que vê em cada manifestação do belo visível apenas o símbolo insuficiente de uma manifestação superior, a beleza invisível, por sua vez, mero reflexo da beleza absoluta.
A novidade destacada por Panofsky é, porém, de outra ordem. Trata-se do surgimento de uma reflexão prática e racional, levada a cabo não mais por filósofos, mas por artistas, que arrancam a obra de arte do mundo interior da representação subjetiva, situando-a num "mundo exterior" solidamente estabelecido. A dualidade espírito/natureza que surge então é superada através de regras (tenham elas validade a priori ou fundamento empírico), de um sistema de leis universais harmônicas e transcendentes.
Herdando o problema da relação espírito/natureza, mas não a solução classicizante –"o feliz compromisso entre sujeito e objeto"–do Renascimento, o Maneirismo se vê forçado à especulação, à legitimação teórica que traz de novo à tona o neoplatonismo (cujo único resquício no Renascimento era a noção, derivada da experiência, de Idéia). Se, por um lado, o artista afasta-se da natureza refugiando-se em Deus, a teoria estética, por sua vez, resgata para a arte em geral e para o belo em particular seu caráter de a priori metafísico.
Têm-se assim estabelecidas as bases que permitiram ao Neoclassicismo metamorfosear a Idéia em Ideal. Com isso completa-se a inversão do conceito platônico. As Idéias não são mais substâncias metafísicas supracelestes, mas sim representações que residem no espírito do próprio homem. Mais ainda, são reveladas preferencialmente na atividade do artista, de tal modo que quando se discute o conceito da Idéia é sobretudo no pintor –e não mais no filósofo– que se pensa.
É possível ver na tentativa de Panofsky de apontar indiçações e possibilidades de aplicação dessas teorias na estética contemporânea o sintoma de um pecado reiteradas vezes invocado contra a sua concepção de história da arte: a crença de que a arte se desenvolve dentro de um quadro delimitado e estável de combinações simbólicas prévias. No entanto, a preeminência da abordagem histórica impede que isto seja mais do que um pequeno senão, incapaz de embotar o brilho de uma obra que a posteridade não hesitou em considerar clássica.

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