São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
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A decadência urbana narrada a seco

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"Miss Danúbio", de Marçal Aquino, é uma pequena coletânea ficcional de "faits divers". Violência, regras de ferro entre marginais, prostituição, traições, estupro, acertos de contas, morte, gangues e cicatrizes –todos os ingredientes de uma visível decadência urbana estão aí, espalhados por 11 contos curtos, secos e frios como notícia de jornal.
A descrição sucinta dos ambientes –bares, estacionamentos, galpões–, a facilidade que o leitor encontra para identificar os personagens –caminhoneiros, prostitutas, marginais– e o trânsito sem tropeços entre uma cena e outra mostram que Aquino possui pleno domínio sobre os instrumentos da escrita. Poeta, autor também de novelas juvenis e de um premiado livro de contos anterior ("As Fomes de Setembro"), ele tem a técnica visivelmente sob controle.
Nesses termos, seus contos ficam a meio caminho entre a minuciosa narrativa de um João Antônio e a ficção sumária de um Dalton Trevisan, para citar dois contistas que abordam universos temáticos semelhantes ao de "Miss Danúbio".
Em alguns casos, um tom de rude lirismo aparece, de forma sutil e surpreendente, como em "Velhos Amigos, "No bar do Alziro" e "Matadores". E um quê de suspense atrai a atenção do leitor em "Santa Lúcia".
A destreza técnica de Aquino, porém, contrasta com o alto grau de previsibilidade de seus personagens e de seus ambientes enquanto criação peculiar, ao menos em "Miss Danúbio". Sendo mais claro: os personagens e os ambientes deste livro, com algumas exceções, são demasiadamente caricaturais. E isso vale também para a maioria dos seus enredos.
Fica a impressão de que Aquino, sem querer, escreveu principalmente para o seu público juvenil, visando a esclarecê-lo sobre uma série de perigos, sobre a existência do Bem e do Mal, e assim por diante.
Não vem ao caso, aqui, se a literatura juvenil deve ir ou não, se ela vai ou não além da caricatura. O fato é que, neste novo livro de Aquino –que não é apresentado pela editora como tendo sido escrito para colegiais–, sente-se falta de mais peso específico, como em João Antônio, ou de mais simbologia, como em Trevisan, para ficar nos dois autores já mencionados.
Alguns nomes de personagens ilustram essa impessoalidade com um ar de coisa já vista (ou lida): Alfredão, Pedro Macaco, Tonhão, Negão... são apelidos que soam comuns, por exemplo, a dezenas de livros ou filmes nacionais de segunda linha que retratam sexo e violência de forma congelada e repetitiva.
O mesmo se dá com os ambientes, sempre os balcões e as mesas de bar, o motel e os espelhos, o pátio de estacionamento e a caminhonete...
É como se uma espécie de ânsia quase adolescente de revelar "a vida como ela é", copiando a "realidade" apenas em seus traços mais visíveis, acabasse constrangendo o inegável talento do autor. Pode-se dizer, por essa razão, que Marçal Aquino teria todas as condições de nos oferecer muito mais do que "Miss Danúbio", nos oferece.

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