São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
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Paixão homossexual é novo tema de Begley

ARTHUR NESTROVSKI

Para os leitores de "Infância de Mentira" (1991), o segundo livro de Louis Begley deve ter vindo como uma surpresa. Muito longe do cenário de perseguição e horror, construído aos olhos de um menino durante a Segunda Guerra Mundial, "The Man Who Was Late" (recém-lançado em português, como "O Homem que se Atrasava") se passa todo na alta sociedade franco-americana, num ambiente que faz lembrar Proust ou Ilenry James.
Sugestões autobiográficas já são um clichê nas resenhas dos livros de Begley, que como o menino Macick escapou por pouco de ser uma vítima do nazismo e como o banqueiro Ben é hoje um dos mais respeitados negociadores internacionais de "joint ventures".
A comparação entre Begley e Louis Auschincloss, também um escritor-advogado, é outro comentário previsível, mas Begley é provavelmente um escritor mais duradouro e com toda certeza um advogado de maior porte.
Nessa mesma linha, a crítica vem aportando os vínculos implícitos entre as duas narrativas, e entre as personagens Ben e Maciek, paralelos mais ou menos legítimos à história de sucesso do imigrante judeu Begley, nascido Ludwik Begleiter, em 1933, na Polônia.
Realismo e literalismo são chagas perpétuas da crítica, mas particularmente injustas no caso de um escritor cujo tema central é a recuperação da memória, ou compreensão retrospectiva das coisas, como chave de si.
Há uma outra ironia, ainda, em apostar todas as cartas na análise das personagens, na medida em que isto acaba exagerando a transformação de estilo e ambiência. É uma transformação aparente: um passo além da trama, os dois livros tratam, afinal, de problemas análogos.
Num e noutro livro, Begley se revela o mais delicado analista das perdas humanas e suas possíveis compensações. Com um ouvido raro para o tom da língua (muito difícil de traduzir), ele é o arquivista dos erros, dos mal-entendimentos próprios que regem a fortuna do afeto e podem fazer de algum ato ou palavra casual o primeiro elo de uma cadeia incontrolável de consequências.
Begley não é nem simplesmente um relator de memórias do holocausto, nem o esteta gentil e um pouco frívolo da alta sociedade. Seu jogo é, de um ponto de vista literário, bem mais alto e mais difícil, na medida em que a narrativa tende a reproduzir, ela mesma, uma impossibilidade de anular, ou reconciliar verdades incompatíveis, que é a própria marca da literatura.
Num e noutro caso, Begley faz do seu estilo –tranquilo, irônico, bem-educado e um pouco fora de moda– o instrumento ideal para se equilibrar entre as vitórias da memória e as devastações que parecem sempre prontas para se desencadear.
Seu gesto típico é um contraste entre o que há de mais material, mais terreno –terrores do sexo, por exemplo– com a superfície virtuosisticamente bem controlada das relações. E só uma leitura muito apressada não vai registrar a enorme carga de sentimento que corre, submersa, na prosa de um romance como "O Homem que se Atrasava".
É um livro, ainda, do mais refinado humor, uma festa da inteligência, generosamente conduzida em pequenos detalhes e comentários. É um daqueles livros impossíveis de se guardar sozinho; como era o caso, na época, com os novos livros de Barthes, é uma oferenda para ser compartilhada, não sem uma ponta de ciúme, porque agora são os outros que estão lendo.
Begley levou 57 anos para escrever sua primeira obra de ficção (descontadas duas pequenas histórias escritas em Illarvard, onde dividiu o primeiro lugar da turma com John Updike) e diz que não sabe por quê resolveu escrever nesse momento.
Mas escreveu o segundo "porque não queria ser o autor de um livro só". E o terceiro, que acaba de sair nos Estados Unidos, porque "também não queria ser o autor só de dois livros". "As Max Saw It" não tem, talvez, a mesma força de imaginação do livro anterior, mas tem tudo para se tornar um sucesso ainda mais retumbante.
Para isto contribui, sem dúvida, o tema da Aids. O poeta Coleridge descrevia a doença, a religião e a poesia como os "extensores da consciência"; na era de Freud, nós hoje teríamos de acrescentar o sexo. Neste romance, centrado sobre a amizade entre um professor de direito e um arquiteto homossexual, mais um grande número de parceiros e coadjuvantes, Louis Begley escreve aquele que é provavelmente o maior romance já escrito sobre uma morte por Aids, ou melhor, sobre as paixões em torno e após esta morte.
"O maior romance sobre o amor heterossexual foi escrito por um homossexual", diz Begley, fazendo referência a Proust, numa entrevista recente à revista "New Yorker", "não vejo porque um heterossexual não possa escrever um romance sobre uma paixão homossexual".
Há paixões de todos os tipos no decorrer do romance, que também faz outras referências explícitas a Proust (a começar pelo nome do arquiteto Charlie Swan). Mas não é, finalmente, sobre o homossexualismo nem sobre a doença que vão convergir nossas atenções. Aqui, como no "Homem que se Atrasava", o que se tem é um romance sobre a amizade, e sobre a educação sentimental de um homem pela convivência com outro.
Como Proust, Begley é um grande artista das transformações retrospectivas, mas ele é um Proust de câmara, não sinfônico, e com um acento americano. A epígrafe do livro vem de um poema de Wallace Stevens. "The Man with the Blue Guitar", que parece servir ao romancista como um verdadeiro tratado de estética, com suas divisões entre as coisas como elas são e como elas nos parecem, e seu contentamento final na existência do corpo e volúpias da percepção.
O humor de Begley, por outro lado, lembra mais a agudeza de Nabokov, sem a crueldade. Mas o contraste entre o estilo cordato de Begley e Ilenry James, com quem também já foi comparado. O próprio Begley indica uma fonte mais próxima dessa tonalidade particular, na apresentação do primeiro livro, com suas referências à "Eneida".
O senso de perda, a turbulenta ininteligibilidade, a melancolia, "as lágrimas das coisas humanas": são todos temas de Virgílio. Nele, também, Begley vai estudar um exemplo de relato calmo, da narração controlada e possível de um horror grande demais para se dissolver em "pathos".
Resta comentar a delicadeza, ou relativa suspensão do julgamento, que está além de acusação ou apologia. O sacrifício de Charlie Swan é precisamente o oposto do de Enéias, que faz da vida uma missão de estado.
Este livro romano de Louis Begley, seu livro, afinal, mais positivo, é ainda um romance da história. Mas é uma história que recusa as monumentalidades, e faz de uma paixão pessoal, recuperada do outro lado da morte, o agente real de transformação humana, e o grande educador.
Quem for ler "As Max Saw It" imediatamente após "O Homem que se Atrasava" talvez sinta alguma frustração pela recorrência de uma idéia de livro muito similar. O que antes surpreendia pelo contraste talvez agora incomode pela semelhança. Mas isto é, afinal, irrelevante para a leitura do livro em si.
Com estes três volumes, Louis Begley já se firmou como um dos maiores autores norte-americanos da literatura do fim-do-século. Modesto, refinado, discreto, ele é a ave rara de uma cultura literária cada vez mais programática, plana e auto-promocional. Sua obra não é, nem tem a ambição de ser uma grande obra, mas é uma das mais benvindas consolações num tempo de excesso e pobreza.

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