São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
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Contos eróticos das Arábias

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O viajante e geógrafo inglês Sir Francis Richard Burton (1821-1890) já dizia que a origem do "amor" está antes na influência da poesia árabe sobre a Europa do que no cristianismo medieval.
Em seu livro "Personal Pilgrimage to Al-Madinah and Meccah" (Peregrinação Pessoal a Medina e Meca), narrativa de uma viagem à Arábia em 1853, Burton, fingindo-se de muçulmano, diz:
"Se não fosse evidente que a espiritualização da sexualidade pelo sentimento, da propensão pela imaginação é universal entre os mais elaborados sistemas sociais da humanidade (...), eu atribuiria a origem do 'amor' antes à influência da poesia e da cavalaria árabe sobre as idéias européias do que ao cristianismo medieval."
Para fundamentar seu argumento, Burton adverte primeiro para o fato de que certos "padres da Igreja" achavam que as mulheres não tinham alma e que os muçulmanos nunca foram tão longe na definição da mulher amada.
Pelo contrário –e é isto que Burton aponta em segundo lugar–, o amante árabe é caracterizado como aquele que enfrenta todas as consequências do amor.
Burton conta então como, na vida nômade do deserto, as tribos árabes se encontravam por determinado tempo, vivendo juntas enquanto durava o pastoreio, para depois se separarem por toda uma geração às vezes.
Sob essas circunstâncias, os jovens se apaixonavam, perdiam o coração para moças com quem, pela lei do clã, eles não podiam se casar, pois jovens de um clã mais elevado não podiam casar com moças de clã inferior e vice-versa.
"Nada pode ser mais impressionável, mais patético", explica Burton, "do que o uso que os antigos poetas árabes fizeram dessas separações e longas ausências". Segundo ele, isso é confirmado em todas as histórias e lendas onde o amor, e não a ambição, é o fundamento da narrativa: "geralmente o amante adoece em consequência da ausência da heroína, e permanece até a hora de sua morte na mais extrema tristeza e ansiedade".
Essa análise de Richard Burton é inteiramente confirmada por dois de três lançamentos de textos antigos da literatura árabe. O personagem Flor de Amor, do livro "O Jardim das Carícias - Conto Beduíno", é o típico amante árabe descrito por Burton.
A ausência de Udaulat, a princesa amada, faz Flor de Amor adoecer: "Dias e semanas se passaram. Todas as alegrias de uma vida despreocupada foram saboreadas, uma a uma, mas a fisionomia de Flor de Amor tornava-se cada dia mais melancólica; o apetite e o sono o abandonavam pouco a pouco, e seu corpo se enfraquecia (...)."
Não é só por conta do anonimato que as histórias das aventuras amorosas do príncipe Flor de Amor seguem a tradição das narrativas de "As Mil e Uma Noites" (séculos 8 a 9). Os temas e os recursos narrativos são idênticos, destacando-se o elemento maravilhoso, a intervenção de magias, encantamentos e fatos sobrenaturais para resolver os enredos.
A poesia nada ingênua do "conto beduíno" –"Mas qualquer felicidade só dura um instante; mal é afagada, e já escapa por muito tempo...", diz o autor– junta-se à curiosa abordagem da sexualidade em "Os Campos Perfumados", de Muhammad al-Nafzawi.
Escrito no século 15, sob encomenda de um sultão da dinastia haféssida de Túnis (Tunísia), é um livro de "erotologia", como diz o orientalista René Khawan, um detalhado tratado meio didático, meio médico sobre o ato sexual, dirigido à instituição dos homens.
Essa espécie de Kama-Sutra árabe revela ainda uma preocupação literária, social e "psicanalítica avant la lettre" que o afasta da pornografia, conforme entende Khawan: "Pois tudo aqui é ditado pela verdade –harmoniosa– dos corpos e das almas. De fato, estamos em oposição direta à pornografia, que pretende ser antes de tudo ruptura, desarmonia".
Para nós, ocidentais desta era, nada mais interessante e curioso que mergulhar na leitura desse universo de haréns, vizires, sultões e emires que há cinco séculos ponderavam sobre "as maneiras de copular" ou "como soltar o órgão viril tolhido".
O terceiro lançamento é um texto para místicos: "Histórias de Nasrudin", anônimo que narra as experiências de um sábio sufi chamado Mullá Nasrudin, personagem criado pelos dervixes, religiosos muçulmanos que fazem voto de pobreza e seguem a doutrina sufista. O livro não tem valor literário, serve talvez de complemento para essa viagem pelos textos do sempre enigmático Oriente.

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