São Paulo, sexta-feira, 29 de julho de 1994
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Livros de juventude caricaturam Borges

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sempre que morre algum escritor importante, o mercado editorial se reanima. Há uma verdadeira corrida a seus manuscritos, a todos os tesouros que o autor pudesse ter guardado na gaveta. Cartas íntimas, rascunhos, poemas de juventude, publica-se tudo aquilo que ele não queria ver publicado.
Essa indiscrição editorial é muitas vezes benéfica. Kafka, por exemplo, pedira a um amigo que destruísse todos os seus manuscritos. Max Brod desobedeceu à recomendação, e a literatura ganhou com isso.
O argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) renegou alguns de seus livros de juventude. "Inquisições" e o "O Tamanho de Minha Esperança", publicados por volta de 1925, não constam de suas obras completas, e Borges nunca autorizou sua reedição.
Com a morte do autor, a curiosidade do público pôde satisfazer-se. A editora Seix Barral (de Buenos Aires) recentemente exumou os dois volumes, e é com um prazer mórbido que nos entregamos à sua leitura.
A primeira impressão é inevitável: Borges tinha razão ao renegar esses livros. Trata-se de duas coletâneas de ensaios, todos muito espessos, ferventes e inábeis. Sente-se que quase nunca correspondem às verdadeiras intenções do autor –que ele se perde diante do assunto, que o palavreado obscuro (empedrado de argentinismos) distrai seu raciocínio. Tudo é programático e turvo, quase ilegível.
Para o leitor brasileiro, outra dificuldade se acrescenta. Àquela época, Borges estava sobretudo interessado na "argentinidade" e acertava contas com a literatura de seu país, além de procurar contrastes entre o espírito argentino e a tradição espanhola.
O número de autores desconhecidos para nós –Ascasubi, Lanuza, Torres Villarroel, Ipuche, Herrera y Reissig– não é pequeno, e seria suficiente para afastar-nos desses livros.
Mas... mas trata-se de Borges, e isto torna tudo mais interessante.
Temos de Borges uma imagem algo irreal: a de um autor "europeu", cosmopolita, nada nacionalista. Seus contos fantásticos, seus ensaios, suas admirações (Wilde, Chesterton, de Quincey, Thomas Browne, Schopenhauer) nos conduzem a um ambiente refinado, aberto a paradoxos e jogos de espírito, ao mais intelectual dos humorismos, à mais elegante forma do terror.
Esse Borges cosmopolita e culto, irônico e cristalino, nada tem a ver com o Borges da juventude, cujo tom militante se pressente já no título de um dos livros agora publicados: "O Tamanho de Minha Esperança".
Mas o importante é ver, nesse Borges da juventude, o quanto já havia do Borges que conhecemos. E o quanto a imagem do Borges que conhecemos se corrige com a leitura de suas primeiras obras.
Em "Inquisições" e em "O Tamanho da Minha Esperança" encontram-se, ainda que de mal delineadas, três características do grande autor que ele viria a ser depois.
A primeira, sem dúvida, é a abrangência de sua cultura. Aos 25 anos, discutia o filósofo Berkeley e terá sido o primeiro argentino, segundo ele mesmo diz, a resenhar o "Ulisses" de Joyce. Resenha vaga e palavrosa, aliás, mas que dá conta do refinamento de sua informação acerca do que ocorria literariamente nos anos 20.
A segunda característica é mais importante. Mostra o quanto Borges, mesmo antes de criar um universo literário pessoal, era sobretudo um crítico, um leitor especialmente exigente no que diz respeito a questões de estilo. Talvez a fama atual de Borges enquanto idealizador de histórias fantásticas e de problemas intelectuais obscureça aquilo que, no fundo, ele tem de melhor como escritor: o fato de ser um estilista refinadíssimo.
Poucos autores, na verdade, têm como Borges o dom do adjetivo ao mesmo tempo surpreendente e límpido, da frase justa, limitada exatamente ao que tinha a dizer. Lembro-me de um artigo seu sobre Carlitos, em que ele escrevia: "o tênue Carlitos". O acerto deste adjetivo –"tênue"–, com sua sugestão de mudez e delicadeza, de fragilidade e graça, é por si só um feito literário.
A preocupação com o adjetivo e com a metáfora está presente nestes dois livros de ensaios. Borges faz análises minuciosas, implacáveis, de poemas alheios. Um dos temas mais caros ao autor –o do convencionalismo das metáforas– está presente: já nestes livros de juventude, conhecemos a ambígua obsessão que Borges dedicava à poesia épica islandesa, feita de sinonímias metafóricas, por exemplo, chamar o céu de "caminho da lua" ou a espada de "peixe da batalha".
Borges está sempre pronto a denunciar, nos versos que comenta, as "encheções de linguiça" e o sobrecargo metafórico. Reação "moderna" aos decadentismos que imperavam na produção latino-americana, com Ruben Darío e Lugones. Mas também cuidados de estilista, fascínio pela dicção poética clássica, convencional até, que ele exerceria nos poemas de maturidade, e que contrastam com o vanguardismo que ele professava na época.
A terceira característica destes livros quase inéditos, que prenunciam o que Borges viria a ser depois, é o interesse dele por figuras desconhecidas do grande público. Borges foi sempre hipnotizado pelo suburbano, pelo marginal na tradição literária européia. Seus autores preferidos não parecem ser Tolstói, Racine, Shakespeare, Balzac, mas sim os que, sendo bons, não são gigantescos: de Quincey, Fitzgerald, Beckford.
Caso curioso de "angústia da influência", diria o crítico Harold Bloom, que aliás certamente se inspirou em Borges para dizer que cada autor significativo tende a "criar" seus próprios antecessores, reescrevendo assim a história da literatura. Borges escolheu antecessores relativamente fracos para ser um forte.
Desse ponto de vista, a insistência de Borges ao falar de figuras como Macedónio Fernandez, Xul Solar ou Cansinos Asséns surge menos como exotismo incômodo ao leitor de hoje, e mais como um estímulo à curiosidade.
Nessa três características, já temos no Borges da juventude aquilo que Borges viria a ser na maturidade. Mais ainda, reconhecemos com mais nitidez a paixão, que nunca o abandonou, pela tradição argentina, nem sempre disfarçada por suas referências cosmopolitas. É o Borges da maturidade, afinal, quem escreveu letras de milonga (musicada por Piazzola), quem inventou tradições de desafios com punhal, quem confiou na arrogância viril de alguns personagens de seus contos.
Resta ver o que falta, nestes ensaios de juventude, para constituir o Borges que conhecemos. Falta clareza, técnica de estilo –pormenor que o tempo corrigiu. Falta senso de humor. Seria preciso menos militância, mais ironia, uma ausência de terror sublime ante a grandeza literária.
Faltam, se posso arriscar a hipótese, as influências de Kafka e do conto policial, que seriam marcantes na obra posterior de Borges. Ainda preso às lutas da vanguarda contra os antecessores espanhóis e latino-americanos, ainda preso à militância do falar argentino, ainda reverente demais frente à Literatura com letras maiúsculas, Borges foi, nestes dois livros renegados, uma caricatura do que viria a ser. Mas as caricaturas esclarecem muita coisa.

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