São Paulo, sábado, 30 de julho de 1994
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Os gols de Romário explicam seus atos

RAMÓN BESA
DO "EL PAÍS"

Há toda uma lenda sobre a vida de Romário que contrasta com seu rosto angelical de futebolista. Contam em Barcelona que de noite é um demônio. A escuridão o encanta e ir dormir lhe é tão difícil quanto se levantar da cama.
Gosta de comer em um restaurante luso-brasileiro em La Rambla e frequenta as discotecas da arte alta da cidade. Por seu corpo corre o samba do Salgueiro, da Mocidade, do Rio inteiro.
A curiosidade de conhecer a suposta personalidade sedutora e viril do jogador chegou a tal ponto que as más línguas disseram –notícia nunca desmentida pelo clube– que Josep Lluís Nú¤ez, o presidente católico apostólico romano do Barcelona, contratou um detetive particular para seguir seus passos. As conclusões da investigação repousariam em uma gaveta do mandante.
Romário chegou marcado de Eindhoven. O PSV, o clube de onde veio, teria vendido seu melhor jogador e pior homem por cerca de 500 milhões de pesetas. Acusavam-no de madrugador, caprichoso, indisciplinado e egoísta.
Discutia com todos –brigava até para bater um pênalti– e mentia como ninguém –chegou a argumentar que um mosquito o havia picado para não participar de uma excursão à Índia. Romário ia e vinha de Amsterdã ao Rio.
Nunca o compreenderam na Holanda, porque, sendo um sul-americano, tratavam-no como um nórdico.
Parido em uma favela e criado na Vila da Penha, limpando pára-brisas nos sinais de trânsito, nunca lhe faltaram o sol nem a bola, como a qualquer criança brasileira, rica ou pobre.
Estava tão cansado de tudo que, no Natal de 1992, chegou a escrever seu epitáfio: "Em 1994 eu paro. Percebi que o futebol é um jogo muito sujo."
O nascimento de Romário como jogador do Barcelona não significou a morte de Stoichkov, ao contrário do que rezavam as apostas. A chegada do brasileiro agitou o trio de estrangeiros e quem levou a pior foi o cândido Laudrup.
Romário acabou com o jogo coletivo desde o primeiro dia. A equipe perdeu seu caráter solidário e mudou para um futebol egoísta. Os gols já não eram repartidos como antes. Era preciso jogar para o "negro". Houve até quem anunciasse: "Cruyff trocou o título pelo Baixinho".
Romário não admite meias medidas: ou se está com ele ou contra ele. Pode marcar três gols em um jogo ou ficar rodadas sem marcar. Ou sobressai ou se esconde no campo.
Poucos jogadores dominam tanto a bola e todas as facetas do arremate e, ao mesmo tempo, controlam o adversário, quanto Romário.
Ele não precisa ver onde está o goleiro para finalizar. Tem um repertório ilimitado de recursos. Sua carroceria grotesca esconde um motor turbo.
A liturgia futebolística de Romário inclui um ritual incomum: não fala, não discute nem grita. Se está em comunhão com a torcida –ou se adivinha que ela reza por ele–, arranca como um avião, abre os braços e plana até aterrissar nos braços de seu amigo íntimo Stoichkov.
Os dois demônios, os dois tipos mais egoístas e solitários, caminham de mãos dadas. Não é recomendável se meter com nenhum dos dois.
Simeone, ante a torcida espanhola, xingou Romário, que encerrou com um gancho o debate futebolístico com o jogador argentino do Sevilla.
Romário nocauteia quem fala pelas suas costas e ameaça quem o põe no banco de reservas. Deus o criou para alegrar o povo com seus gols –assim ele disse– e seus gols servem para explicar seus atos.

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