São Paulo, sábado, 30 de julho de 1994
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Morais termina a novela da vida de Chatô

MARCO CHIARETTI
DA REPORTAGEM LOCAL

Fernando Morais terminou há dez dias a biografia mais esperada dos últimos anos. "Chatô" conta a vida de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, aliás Assis Chateaubriand, criador dos Diários Associados e da TV Tupi, jornalista, político, mau-pagador, um homem que tinha cem empresas e não sabia ler um balanço. O rei do Brasil.
Morais levou sete anos para escrever as 732 páginas do livro. Descontando os quatro anos como secretário em dois governos estaduais, foram três anos de pesquisa, mais de 200 entrevistas, várias viagens, milhares de artigos lidos.
A tiragem inicial é de 80 mil exemplares, segundo ele. Mais um best-seller. Como "A Ilha" (1976), sobre Cuba, e "Olga" (1985), sobre Olga Benário, a mulher de Luiz Carlos Prestes.

Folha - Como nasceu "Chatô"?
Fernando Morais - Quando terminei "Olga", fui fazer minha campanha a deputado federal. Perdi. Comecei a caçar assunto. Pensei no delegado Sérgio Paranhos Fleury, mas achei que era um cadáver fresco demais...
Folha - Chatô era um "cadáver" mais antigo...
Morais - É. Morreu em 1968. Aliás, foi a única vez que o vi. Morto. Eu era repórter. Fui fazer uma matéria. Vi seu corpo exposto no edifíco da rua Sete de Abril onde ficava a sede dos Diários Associados. E aí, com o tempo, a ferida está mais fechada, a paixão já assentou.
Folha - Quantas pessoas você ouviu?
Morais - Tomei 230 depoimentos, dos quais descartei 50, porque era mitomania.
Folha - Entre os que você considerou, quem está? Roberto Marinho, por exemplo?
Morais - Eu o ouvi, por telefone. Uma entrevista curta, duas ou três perguntas, mais sobre uma característica curiosa de Chateaubriand: ele rompeu, de maneira ruidosa, ácida, com os filhos de seus melhores amigos do começo do século.
Folha - Por exemplo?
Morais - Irineu Marinho foi um dos homens que mais ajudou Chateaubriand. Roberto Marinho, o filho, foi vítima de sua virulência.
O conde Francisco Matarazzo, o criador da dinastia, permitiu que ele implantasse os Associados em São Paulo, deu-lhe na prática um prédio no Anhangabaú, já que ele nem pagava aluguel, e Chateaubriand tratou o filho do conde, Chiquinho, com uma dureza terrível. Chegou ao paroxismo de inventar que um cunhado do conde tinha sido linchado em Milão.
Folha - Inventou?
Morais - Pura invenção. Matou o sujeito. Deu a notícia: "Foi linchado em Milão o senhor tal, cunhado do conde Matarazzo..."
Folha - Por que ele fazia isso?
Morais - É difícil dizer. Se você for olhar pra vida dele, ele reproduzia isso em casa. Com os filhos dele, teve uma relação de crueldade. Chegou a ser "case" de tese de doutoramento de um psiquiatra norte-americano sobre teratologias familiares.
Certamente, há algo freudiano neste "subsolo" do Chateaubriand. Foi assim com os outros e foi assim com ele, com os três filhos.
Folha - Quando você descobriu teu personagem?
Morais - A descoberta do Chateaubriand pra mim foi muito demorada. Minha geração de jornalistas só ouviu sobre ele seu lado negativo, "entreguista". Tinha uma frase: "Mês que vem, a Light comemora 30, 50 anos no Brasil. Se este fosse país civilizado, deveria ser feriado nacional..."
Folha - Por quê?
Morais - Para ele a Light era o símbolo do desenvolvimento. Ele tinha uma visão disso muito pessoal: o desenvolvimento à sombra das grandes empresas, do capital internacional. Ele achava que o Brasil não tinha que se desenvolver industrialmente. Essa era uma das razões das brigas dele com Juscelino. Chatô achava que o país tinha de ser um eterno fornecedor de matérias-primas. "Mandioca", ele dizia, "temos de exportar mandioca".
Folha - Era maquiavélico? Ambíguo? Canalha?
Morais - O que fascina nele, não como pessoa, mas como personagem, é exatamente a diversidade. Se você me perguntar qual a característica mais forte dele, e eu te disser uma única, vou estar sendo injusto, leviano, pobre. Porque o principal traço da personalidade dele era a imprevisibilidade, o caráter multifacético.
Ele achava que os fins justificavam todos os meios. Montar o Masp justificava tudo. Era absolutamente natural que ele encostasse a peixeira no pescoço dos empresários que estavam ganhando dinheiro: "Vamos taxar fulano-de-tal em um Renoir, vamos taxar o Amador Aguiar em um Matisse".
Folha - Agia nos bastidores?
Morais - Não. Chatô não controlava marionetes. Anunciava antes o que ia fazer. Quando mandou um capanga praticar um atentado contra um diretor da Fiesp, ele escreveu um artigo semanas antes, dizendo o que faria. E mandou castrar o empresário.
Folha - De onde veio o Chateaubriand?
Morais - O Chateaubriand dele nasce de uma fantasia do tio-avô que montou um colégio no interior da Paraíba, uma homenagem ao Chateaubriand francês. E como no caso de Sarney, virou nome de família. Poderia ser Goethe, Shakespeare. Ele poderia ter se chamado Francisco de Assis Shakespeare Bandeira de Mello.
Folha - Escrever o livro foi uma novela longuíssima. Durou anos...
Morais - Chegou um momento que eu achei que eu não ia acabar o livro nunca. Fiquei com medo. Li 11.800 artigos dele, um por um. Era um grande repórter, agudo, conciso. Era um pouco rococó, às vezes, assim como era um pouco desorganizado. Foi um dos homens mais desorganizados que exisitiram. Em 76 anos de vida e cem empresas, só participou de duas assembléias. Não sabia ler um balanço.
Folha - Andava com dinheiro no bolso?
Morais - Nunca. Tinha desprezo profundo pela posse do dinheiro. Pedia dinheiro emprestado pra pagar um táxi, o engraxate.
Folha - E devolvia?
Morais - Dinheiro pequeno ele pagava. Mas foi conhecido como alguém que odiava pagar dívidas. Devo, não nego, e não pagarei. E às vezes negava.
Folha - Ele se sentia brasileiro?
Morais - Brasileiríssimo. Mais do que isso. Era paraibano. No fundo, essa ligação dele com a Paraiba, com o Nordeste, com a violência, com o macho, com o cara que andava com a peixeira na cintura, era sua marca.
Folha - Era um homem culto?
Morais - Muito. Foi alfabetizado aos 13 anos, e quase ao mesmo tempo aprendeu alemão. Era apaixonado por Goethe. Gostava de Nietzsche. Aos 18 anos foi morar na Alemanha, como um dos primeiros enviados especiais do país. Entrevistou Karl Kautsky, por exemplo. E ainda discutiu filosofia com o entrevistado.

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