São Paulo, sábado, 30 de julho de 1994
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Desponta a nova arte do enxerto de órgãos

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

A notícia é tão odiosa que deve ser verdadeira, é o que digo a mim mesmo, me sentindo realmente assustado. Ninguém inventaria que há uma ou várias quadrilhas de alta especialização dedicadas ao roubo de órgãos de crianças vivas para implantá-los em doentes que podem pagar por eles. Nem mesmo os mais perversos e enjoativos dos filmes que nos impingem hoje em dia já se ocuparam, que eu saiba, desta novíssima modalidade de terror.
Ainda não há, em nenhum código criminal, qualquer hipótese de pena correspondente ao furto de matéria viva. Em termos de literatura todos nos lembramos da intenção criminosa de Shylock, que queria extrair de Antonio, como pagamento de dívida, uma libra, ou cerca de 450 gramas de carne viva. Shylock não consegue receber o que lhe devem devido a um truque legal.
O contrato falava nos 450 gramas de carne mas não falava em sangue. O que o tribunal diz a Shylock é que ele, portanto, podia tirar a carne mas não podia verter nenhum sangue do devedor. E foi assim que Shylock ficou sem seu peso de carne.
Acontece que o homem, que não tem melhorado de caráter com o passar do tempo, progrediu muito do ponto de vista tecnológico. Hoje já sabemos extrair certos órgãos de um corpo humano sem sangrar demais e certamente sem matar o doador. Ou o assaltado, conforme seja o caso. De certa forma podemos dizer que Shylock acabou aprendendo.
Mas estou saindo do assunto. Ou fugindo dele. Não se trata, como em "O Mercador de Veneza", de alguém que prometeu ceder um pedaço do próprio corpo e depois se arrependeu. Trata-se, segundo reportagem do "Correio Braziliense", da "máfia dos transplantes", que "mutila nossas crianças". A bem dizer, pelo que li no referido jornal, não existe prova de que essa máfia exista, ou já exista.
Os horrendos casos narrados, como o das duas crianças que teriam sido sequestradas no Barrashoping do Rio e "devolvidas aos pais com um rim a menos", não são apresentados com provas convincentes. Mas essas denúncias fazem parte de um pesadelo que está na cabeça de todos nós. Não estão provadas mas são verossímeis. E são mais horrendas do que os casos verídicos, chegados ao conhecimento de todos nós, de crianças sacrificadas em ritos de magia negra.
A máfia dos transplantes, que, se não existe parece estar em formação, não tem nada a ver com paixões e crendices abomináveis. Trata-se da fundação de uma empresa, de um negócio rendoso, uma espécie de multinacional. A idéia de minorar os horrores do superpovoamento do mundo com o discreto sacrifício de crianças pobres sem futuro, com a finalidade de prolongar a vida de pessoas úteis à coletividade, tem até um toque puritano, quase higiênico.
Essas pessoas úteis vivem em países que controlam sua população e que, entre outras coisas, têm descoberto em suas universidades e laboratórios os meios de ampliar a expectativa humana de vida. Ampliam tal expectativa no mundo inteiro. Mesmo em países marginais, preguiçosos. Mesmo em Ruanda. Ou na Somália. Ou na cidade do Rio, que até hoje lança a merda produzida pelos cariocas diretamente nas praias em que os cariocas tomam banho.
Pergunta-se, então: é justo que membros desses países cultos e laboriosos morram antes do tempo por falta de algum órgão vital que pode ser colhido entre os párias e inúteis? Entre os que, de qualquer maneira, vão morrer jovens, de cólera, tuberculose, lepra e outros males obsoletos?
Swift e a natalidade
A verdade é que estamos chegando, neste fim de milênio, a uma sólida lucidez, livres afinal das teias de aranha de superstições que agora só afligem povos que ainda têm medo de trovoada. Estamos prontos para ousar tudo que possa ser advogado e defendido com irrespondível lógica. E com calma. Boas maneiras. Um limpo canibalismo pode perfeitamente estar a caminho, não o canibalismo de nos devorarmos uns aos outros e sim o de nos anexarmos órgãos alheios que porventura estejam nos fazendo falta.
A primeira proposta de canibalismo que as sociedades modernas conheceram foi feita em tom de sátira. É de boa tradição cultural que temas insuportáveis sejam primeiro ensaiados em forma de brincadeira.
Essa questão de como utilizar seres humanos que constituem um peso morto para a sociedade organizada foi objeto, na primeira metade do século 18, do mais famoso de todos os panfletos, estimulado "A Modest Proposal", em que Jonathan Swift sugeriu que se acabasse ao mesmo tempo com a miséria e a fome no Reino Unido usando na cozinha a carne de crianças irlandesas.
É curioso reler o texto pois ele mostra, além da tese central, como enfrentamos, ou inventamos os mesmos problemas através dos tempos. Swift já sentia a pressão da crescente população no planeta, quando no tempo dele havia cerca de 700 milhões de pessoas no mundo, contra nossos mais de 5 bilhões. Ele aponta, à sua volta, muita gente pobre morrendo, como hoje, de fome, de subemprego, de frio.
Defendendo-se dos que certamente iriam criticá-lo pela proposta singela de comer as crianças dos lares indigentes, Swift se põe a calcular o número daqueles que, ao fim da vida cruel e boçal que haviam vivido, não teriam preferido ser vendidos como uma "delicatesse", um quitute aos dois anos de idade.
Para demonstrar seu completo desinteresse pessoal no caso, o autor declara que seu filho mais velho não pode mais ser vendido no açougue, pois passou de nove anos e portanto já é carne musculosa e fibrosa demais para a boa mesa, e que sua mulher ultrapassou a menopausa.
Mas o mundo tecnológico progrediu, é o que daqui podemos dizer a Swift. Graças às modernas técnicas de "meat processing" e "meat packing", um adolescente de hoje provavelmente entraria bem na caçarola, e mulheres cada vez mais idosas chegam todos os dias à televisão, provando que continuam na linha de produção.
A distância que nos separa da "Modest Proposal" é que ela de certa forma nos levava de volta ao passado, ao canibalismo direto, enquanto a máfia do transplante é puro futuro, um futuro que até pouco tempo atrás não foi sequer vislumbrado pelos mais distintos profetas do nosso tempo, como Huxley e Orwell.
É que profetas só têm olhos e ouvidos para o dramático, como a queda de reinos, a destruição de cidades, o apocalipse nuclear, que acabou não vindo, a chegada do Messias, de D. Sebastião, de Godot, que continuam não aparecendo.
Os profetas não vão se dar o trabalho de avistar no céu o logotipo de uma nova empresa, especializada em transplantes e enxertos. Quando ela vier, virá discreta e suave, poupando-se, aliás, despesas com agências de publicidade.
As Nações Unidas, na sua Comissão de Direitos Humanos, têm estudado, entre as modernas formas de escravidão, denúncias do possível uso de crianças pobres como fonte de órgãos vitais para transplante. Mas não se apurou nada. O pesadelo continua adiado.
Pela parte que me toca, estou achando que o aspecto meio milagroso e meio sinistro que parece cercar a aproximação de um novo milênio, é que acabamos de adquirir uma absoluta consciência física de nós mesmos. Perdemos séculos e séculos da cerimônia que tínhamos com nosso próprio corpo, afastamos de nós todo o pudor, mesmo em relação às partes mais pudendas. E, no processo, perdemos também o respeito pelo corpo dos outros.
O fenômeno, em si mesmo, provavelmente não tem maior importância, desde que essa nova insensibilidade não tenha consequências comerciais e órgãos vitais acabem postos à venda em supermercados, sem que ninguém se interesse pela sua procedência.

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