São Paulo, domingo, 7 de agosto de 1994
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Naipaul e o declínio de todos os impérios

Escritor vem à Bienal para lançar "Um Caminho no Mundo"

MARIA ERCILIA
EDITORA-ADJUNTA DO MAIS!

O mais importante convidado internacional desta Bienal é pouco conhecido no Brasil. V.S. Naipaul, 56, indiano de origem, nascido na pequena ilha de Trinidad, um dos maiores escritores contemporâneos de língua inglesa, tem um interesse especial para o Terceiro Mundo: as sociedades coloniais e o colapso dos impérios são sua obsessão central. O que não lhe assegura um passaporte em tempos de correção política. Sua pouca benevolência com os países em desenvolvimento já lhe valeu muitos ódios.
O orientalista Edward Said aplicou-lhe certa vez o insultuoso termo "white man's nigger" ("negro do homem branco", aquele que despreza sua própria raça). Seu colega caribenho Derek Walcott (Prêmio Nobel de Literatura, 1992), afirmou que ele reverencia demasiado a Inglaterra.
Bobagem. Naipaul enxerga com a mesma frieza a decadência de Londres, já nos anos 50 (em "O Enigma da Chegada", Cia. das Letras), por exemplo. Sua impiedade é fruto da capacidade de observação, não de servilismo.
Naipaul lançará no Brasil "Um Caminho no Mundo", coleção de nove narrativas frouxamente interligadas, uma evolução da forma desenvolvida por Naipaul em "O Enigma da Chegada". Disfarçado em relato de viagens, aquele livro era parte autobiografia e parte ensaio, descrevendo essencialmente a transformação de Naipaul em escritor.
Em "Um Caminho no Mundo", Naipaul ata história, ficção e autobiografia. O narrador da segunda história é o próprio Naipaul, adolescente a cozinhar ambições literárias em Trinidad; e depois adulto que retorna à ilha convulsionada por conflitos raciais. Na terceira história ele relata seu projeto de escrever um romance sobre um revolucionário, situado na Venezuela. O projeto se transforma na narrativa, com um protagonista chamado simplesmente de "narrador".
Segue-se a história dos encontros de Naipaul com Foster Morris, escritor inglês, espécie de promessa de Graham Greene jamais realizada. Morris escrevera um livro nos anos 40, justamente sobre movimentos políticos em Trinidad, e caíra em semi-obscuridade.
A partir daí Naipaul vai e vem entre outros destinos individuais que refletem o arrastado relacionamento entre império e colônia. Há Lebrun, revolucionário profissional de Trinidad, que viaja de país em país buscando apoio e dando palestras, e Blair, destruído por um regime corrupto na África.
Duas das histórias mais ambiciosas do livro têm estrutura semelhante: uma trata do regresso de Sir Walter Raleigh à Inglaterra (século 17), depois de expedição fracassada à Guiana. A outra descreve os esforços de Francisco Miranda (século 19), venezuelano que passa a vida a tentar uma revolução em seu país.
São histórias de grandes loucuras e grandes fracassos. Dois homens obcecados em se inventar, que acabam trancados em infernos criados por sua própria visão doida de um paraíso. Raleigh fantasia se tornar rei na América do Sul e achar ouro, escreve livros de viagem onde injeta fantasia pura. Miranda compra títulos de coronel e carrega uma genealogia espanhola falsificada pelo mundo afora. Ambos terminam a vida na prisão.
Ainda que grandiosas, estas duas histórias são talvez as mais irrealizadas do livro. Há uma nota falsa nelas. Raleigh é acuado por seu médico, que o defronta com o fracasso de sua expedição. Miranda se debate em longo monólogo sobre a cadeia de acontecimentos que acaba por precipitá-lo em Trinidad. As vozes dos dois personagens, porém, parecem-se demasiado com a voz do autor; eles não se erguem além da condição de fantasmagorias históricas.
O que não chega a prejudicar a realização de "Um Caminho no Mundo". É um livro magistral; a prosa de Naipaul é transparente, elegante, seu olhar detalhista vem temperado de uma compaixão pelos seus personagens ausente de suas obras anteriores. Praticamente todos eles se movem do blefe à humilhação. Há um quê de fatalismo na interpretação destes destinos que Naipaul nos oferece. Em algum momento, os conquistadores do passado e os revolucionários do presente parecem simplesmente encalhar, derrubados pela história que a todo custo querem escrever.
Recusando-se a dar forma acabada de ficção à sua coleção de histórias, Naipaul torna-as porosas. Alterna episódios autobiográficos, semi-históricos e puramente ficcionais, sempre deixando uma porta aberta, apresentando a ficcção como um rascunho. Um relato anuncia o outro, às vezes contém o outro em forma resumida.
É impossível não enxergar um paralelo entre a descrição que Naipaul faz de sua formação como escritor e o caminho destes que escolheu para personagens de seu livro. Como ele, tiveram que se inventar e inventar sua paisagem, e se sentem condenados à incompletude. Como ele, estão empenhados numa busca desesperada por uma identidade. Naipaul se reserva apenas o direito de não partilhar de seus fracassos...

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