São Paulo, domingo, 7 de agosto de 1994
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Clássico de Goethe ganha primeira tradução no Brasil

JOHANN WOLFGANG GOETHE

Todo aquele que, diante de nossos olhos emprega com tenacidade seus esforços para atingir um propósito, aprovemos ou censuremos sua intenção, há de ser digno de nossa simpatia; mas, uma vez resolvida a questão, desviamos prontamente dele nosso olhar, tudo aquilo que se mostra acabado, concluído, não pode absolutamente reter nossa atenção, sobretudo quando já havíamos profetizado, desde o princípio, um desfecho desastroso à empresa.
Eis por que não iremos entreter nossos leitores com minudências a respeito da dor e miséria que se abateram sobre nosso infeliz amigo quando viu tão inesperadamente destruídos suas esperanças e seus desejos. Saltaremos, portanto, alguns anos e iremos procurá-lo numa espécie de atividade e prazer, relatando por ora apenas o necessário para a continuidade da história.
A peste ou uma febre malsã causam estragos mais rápidos e violentos num corpo sadio, vigoroso, e assim o pobre Wilhelm foi acometido inopinadamente por uma triste sina, de tal modo que num instante todo o seu ser foi devastado. Pouco mais ou menos como quando, sob preparativos queimam-se fogos de artifício, e os cartuchos artisticamente preparados e dispostos segundo uma determinada ordem, sob a qual deveriam desenhar no ar figuras fabulosas e variadas, começam a silvar e a zunir desordenada e perigosamente, assim também no peito de Wilhelm agora soçobravam indistintamente felicidade e esperança, volúpia e alegria, o real e o sonhado. Em tais instantes brutais, fica paralisado o amigo que acode em seu socorro, e para o próprio atingido passa a ser um alívio o instante em que seus sentidos o abandonam.
Seguiram-se dias de intensa e contínua dor, eterna e intencionalmente renovada, mas que também devemos considerar como uma dádiva da natureza. Em tais horas Wilhelm ainda não havia completamente perdido sua amada; suas dores eram tentativas infatigavelmente renovadas de reter ainda aquela felicidade que se lhe evadia da alma, de retomar em pensamento a possibilidade de procurar uma curta sobrevida às suas alegrias para sempre desfeitas. Assim como não se pode dizer que um corpo está inteiramente morto, enquanto dura sua decomposição, enquanto as forças que procuram em vão agir segundo suas antigas obrigações desgastam-se na destruição das partes que outrora animavam, e só quando tudo está consumido, quando vemos o conjunto decomposto num pó indiferente, é que nos aflora o sentimento vazio e deplorável da morte, reconfortado apenas pelo sopro do Ser que vive eternamente.
Numa alma tão nova, inteira e amorosa havia muito o que dilacerar, destruir, aniquilar, e a força prontamente recuperadora da juventude trouxe ao domínio da dor um sustento e uma violência novos. O golpe havia ferido na raiz toda sua existência. Werner, seu confidente por necessidade, recorreu zeloso ao fogo e à espada para penetrar na vida mais íntima de uma paixão odiosa, este monstro. A ocasião era por demais favorável, as provas estavam à mão, e quantas histórias e rumores não soube ele aproveitar! Foi avançando passo a passo, com violência e crueldade, sem deixar ao amigo o bálsamo do menor equívoco momentâneo, destruindo-lhe todos os refúgios nos quais poderia abrigar-se contra o desespero, de tal modo que a natureza, não querendo permitir a ruína de seu favorito, atacou-o com uma enfermidade, para desafogá-lo de outro lado.
Uma febre violenta, com suas sequelas, os remédios, a tensão e o abatimento, mais os desvelos da família, o amor de seus próximos, que só podem ser devidamente apreciados nos instantes de apuro e necessidade, serviram-no como distrações outras para a alteração de seu estado e ocuparam-no dolorosamente. Só quando se sentiu melhor, isto é, quando se esgotaram suas forças, é que Wilhelm viu com horror o abismo torturante de sua árida miséria, como alguém que baixa os olhos para a oca cratera calcinada de um vulcão.
Passou doravante a censurar-se amargamente por ainda ter, depois de uma tão grande perda, um instante sem dor, tranquilo, indiferente. Desprezava seu próprio coração, ansiando pelo bálsamo da dor e das lágrimas.
Para despertar nele tudo isso de novo, trouxe à lembrança todas as cenas de sua felicidade passada. Pintava-as com as mais vivas cores, empenhava-se em voltar a penetrá-las, e, quando atingia o ponto culminante quando o brilho do sol dos dias passados parecia reanimar-lhe os membros e erguer-lhe o peito, olhava para trás, na direção do pavoroso abismo, reconfortava seu olhar naquela profundeza fulminante, atirava-se a ela e arrancava da natureza as dores mais amargas.

Tradução de NICOLINO SIMONE NETO

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