São Paulo, segunda-feira, 8 de agosto de 1994
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Apóstolos da mesma Bíblia

MAC MARGOLIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para qualquer jornalista, estrangeiro ou não, as eleições deste ano são um prato riquíssimo. Comecemos pelo cardápio: Lula ou Fernando Henrique Cardoso? Se for confirmado o gosto atual do eleitor, o segundo turno será disputado por estas duas figuras, uma escolha rara na culinária política mundial.
O Lula se destaca pela sua trajetória fenomenal. Escapou do destino do sertão, terra de oportunidades dessecadas e funerais precoces. Reinventou-se como sindicalista urbano e se firmou como um protagonista da vida nacional. Quais políticos do planeta (Lech Walesa? Nelson Mandela?) possuem um currículo tão notável?
No outro lado das barricadas está Fernando Henrique Cardoso, polido, poliglota e polivalente. Doutor em sociologia, senador da República, transita elegantemente entre vários mundos. É taxado de burguês e elitista, mas penso que isso se deve menos aos fatos do que à nossa ânsia de achar algum rótulo ideológico fácil para pendurar nesse confronto. Muito mais marcante para mim, o FHC é uma dessas figuras encontradas com facilidade na Europa antiga mas quase inexistente nos Estados Unidos (pelo menos desde Woodrow Wilson): um intelectual público. Ou seja, um acadêmico cuja obra e pensamento se confundem com a vida cívica e política.
Para os de fora, a eleição apetece. O FHC é tido como a solução mais previsível, o candidato "politicamente correto", embora pouco picante (como se eliminar meio século de inflação, principal cruzada dos tucanos, fosse receita corriqueira). Mas é o Lula que parece excitar o paladar estrangeiro. Das duas uma: imaginam alguns que um presidente Lula significará o renascimento da esquerda da América Latina, desnorteada pelo avanço das reformas neoliberais. Outros vêem nele algo de transformista. Uma vez eleito, dizem, o Lula pode dar meia volta, e, como Menem ou Felipe Gonzalez, até trair o seu passado para consolidar a abertura econômica. Lula às vezes parece nutrir as duas imagens simultaneamente, se fazendo de social-democrata nos púlpitos lá fora e social-petista no palanque nacional. Interpretar o "verdadeiro" Lula virou quase um jogo de salão.
Mas tem um fantasma pairando sobre essa eleição. Chama-se Fernando Collor de Mello, aquele que assombrou a propaganda eleitoral com a sua foto e fala desincorporada, como um visitante sepulcral.
Quais são as bandeiras principais desta eleição? Primeira: a corrupção. O movimento pela moralização da política foi deflagrado com o assalto ao erário, que Collor acabou epitomizando –sem querer, é claro. O eleitor deste ano é, fatalmente, um brasileiro de cara pintada. Segunda bandeira: a abertura econômica. Pela sua ambição faminta e miopia cívica, o Collor foi derrubado e diabolizado. Mas ele também mudou a agenda nacional, abrindo a economia e dedurando as panelinhas corporativistas. O próprio Lula já moldou o seu discurso para enquadrar essa nova realidade, falando em "flexibilização" de monopólios e de uma privatização "pragmática". No fundo, os dois candidatos parecem apóstolos divergentes da mesma bíblia. O FHC querendo suavizar o regime de capital e Lula querendo capitalizar o social. Ou será o contrário? Talvez com a inevitável polarização do segundo turno, a fala dos dois comece a engrossar. Mas o fato é inescapável: mesmo ausente de corpo, é o Collor quem estará definindo os termos do debate.

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