São Paulo, segunda-feira, 15 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Exposição convida país para viagem no tempo

MARCELO LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 20 de outubro, 17 dias após o primeiro turno da eleição, o país tem encontro marcado com os fantasmas de sua identidade. É a data de abertura da exposição 'O Brasil dos Viajantes', no Masp, a ponta de um iceberg de US$ 4 milhões.
Junto com a exposição virá um livro de 528 páginas, três volumes acondicionados em caixa de papel artesanal. Serão 550 imagens de navegadores, exploradores e cientistas, impressas em papel alemão.
Três centenas delas poderão ser vistas pelo público no Masp, mas os 6.500 exemplares da edição bilíngue (1.500 em inglês e 5.000 em português) ficarão restritos ao círculo de poucos felizardos e instituições que constam do 'mailing list' do Grupo Odebrecht, que financia o projeto.
Em novembro, no mesmo Masp, especialistas de vários países participarão de um simpósio sobre artistas-viajantes.
Mesmo quem não puder ir ao museu escapará de topar com Post, Eckhout, Martius ou Rugendas.
A cada domingo das primeiras semanas da exposição, seis vídeos de 2min30s inseridos nos intervalos do 'Fantástico' levarão democraticamente a todos os lares informações sobre esses e outros autores de tantas imagens que vagueiam pelo inconsciente, no limbo da identidade nacional.
Oficialmente, este que é provavelmente o maior –mais caro– empreendimento cultural do momento no país servirá para comemorar os 75 anos da Odebrecht (leia texto na pág. seguinte).
Potentado tecnológico e cliente assíduo do banquete estatal, o grupo empresarial contém muitas das ambiguidades que diluem a auto-imagem do Brasil. Outras: Campeões do futebol-arte ou assassinos de crianças? Sambistas inspirados ou genocidas? Nação do futuro ou herdeiros da escravidão?
Na falta de respostas conclusivas, o que a pesquisadora Ana Maria Moraes Belluzzo –cérebro de 'O Brasil dos Viajantes'– propõe é uma viagem arqueológica. Num mundo em que não há mais terras nem povos por descobrir, a volta ao passado tem a vantagem de reavivar o gosto pelo exótico.
Isto, é claro, se o leitor-visitante tiver alguma inclinação para a auto-ironia e se dispuser a encarar com distanciamento as imagens desconcertantes de seus próprios antepassados.
A primeira coisa que o neo-explorador vai descobrir, no conforto do Masp ou da poltrona de leitura, é que desde o início o Brasil nunca foi um. Mais ainda, que os espelhos desse caleidoscópio eram os olhos de outros povos.
Ou, como escreveu Ana Maria Belluzzo: "Não somos os autores e nem sempre os protagonistas. Fomos vistos, não nos fizemos visíveis. Não nos pensamos, mas fomos pensados".
Em outras palavras, as primeiras imagens do país (melhor seria dizer: da paisagem) revelam mais sobre os próprios europeus. Por exemplo, sobre sua dificuldade para haver-se com um mundo desconhecido, para decidir em que categorias classificar seus incompreensíveis habitantes: bons selvagens ou canibais?
Até hoje os brasileiros se debatem entre esses extremos, que não escolheram, mas aceitam como o peso de um fado, um destino. Daí, talvez, a melancolia com que se entregam a crises de auto-estima e a euforia exagerada, quase rancorosa, dos momentos de ufanismo.
A melhor terapia para essa ciclotimia cívica é aceitar convites como o de Belluzzo e da Odebrecht. Desnudada em sua estrutura sedimentar e reticulada, a cultura perde a aparência de natureza inapelável.
Libertos da bondade natural e da selvageria, pode-se descobri-las em inúmeras imagens datadas. Estas importam como "fosforescências", nas palavras de Belluzzo, não como slides de uma preleção sobre história da arte.
No primeiro volume de 'O Brasil dos Viajantes' (O Imaginário do Novo Mundo), por exemplo, a autora escolhe duas obras da primeira metade do século 16 para mostrar a indecisão européia entre o céu e o inferno americanos.
A primeira delas é 'Adoração dos Magos' (veja reprodução à dir.), de um conjunto de 18 painéis para a Sé da cidade portuguesa de Viseu, provavelmente de 1505. Se a representação de um tupinambá entre os adoradores de primeira hora do Cristo é um choque, hoje, imagine-se o que não terá suscitado naqueles tempos.
No entanto, Belluzzo traz à tona uma interpretação tranquilizadora, alegórica, da cena. Há indícios de que o enigmático 'quarto rei' seja ninguém menos do que Pedro Álvares Cabral. O índio, nesse contexto, seria uma espécie de mensageiro do Novo Mundo, que reconhece a verdade cristã.
Outra tela, de autoria desconhecida e intitulada 'O Inferno', é bem menos sutil na associação dos índios com as regiões escuras da alma, o mal e o pecado.
Na luz sombria do quadro, mal se percebe a figura do demônio que contempla de seu trono o suplício de pecadores. Muito menos, que o Tinhoso carrega sobre a cabeça um inconfundível cocar indígena. Um capeta auxiliar circula pela cena com uma tanga de penas.
Em outros momentos, os indígenas permanecem seguramente confinados ao exótico. É o caso da pioneira exibição de tupinambás no desfile triunfal de Henrique 2º em Rouen, em 1550. Ronaldo Graça Couto, um dos organizadores da exposição 'O Brasil dos Viajantes', apelidou-a de 'primeira escola de samba'.
Progressivamente, esse desconcerto inicial dos europeus cede lugar para uma visão cada vez mais 'objetiva' do Brasil. Coincidindo grosso modo com os séculos 17 e 18, o segundo volume do livro (A Ordem do Universo) cobre esse interesse científico pelo continente.
O terceiro volume (A Construção da Paisagem) apresenta a visão romântica das cidades e da natureza brasileiras do século passado. A exposição no Masp segue aproximadamente a mesma estrutura (veja box na próxima pág.)
Parece haver uma progressão, no sentido de maior objetividade, nesses quatro séculos. Ou, quem sabe, só mais uma ilusão européia: a esperança racional de que o Brasil, um dia, tenha mais substância e menos exuberância.

Texto Anterior: Editores discutem novas estratégias para o mercado brasileiro de livros
Próximo Texto: Exposição vai a Portugal
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.