São Paulo, terça-feira, 16 de agosto de 1994
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Antonio Dias recusa herança de Iberê

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

"Bobagem". Ele não diz isto, mas é o quê, em resumo, pensa do que passaram a comentar depois da morte de Iberê Camargo. "Não é assim que os artistas plásticos avaliam as coisas." Antonio Dias, em suma, não quer ouvir falar que, com a morte de Iberê, ele se tornou o mais importante artista plástico brasileiro vivo.
"Temos ainda grandes artistas, gente de várias idades", acrescenta –sem mencionar nomes. "Um artista é uma condição de vida, um modo de enfrentar o mundo. Você pode ser um artista maior e estar numa fase péssima, o que não faz com que você seja menor, mas esteja menor."
"Tenho vindo aqui uma média de três semanas por ano, praticamente para ver minhas filhas e minha mãe. É muito pouco, reconheço."
No dia seguinte (sábado passado), lá ia ele embora de novo, para Colônia. Mas, daqui a algumas semanas, ele retorna, para duas exposições (uma no Rio, outra em São Paulo) e, muito especialmente, para a 22ª Bienal. E, quem sabe, para o próximo Free Jazz. Dias, que por sinal é casado com uma cantora brasileira (Lica Cecato) de prestígio na Alemanha, adora música. "Tenho um gosto musical dos mais ecléticos", revela, após confessar que só trabalha ao som de uma FM, em comunhão com o resto da população de onde estiver.
No chão de uma das salas, duas pinturas em papel: "Brazilian Painting" e "Bosnia Jungle". Lembram vírus magnificados sobre fundo verde e vermelho, respectivamente. São apenas pintas de uma onça, copiadas de uma foto ampliada e metaforicamente utilizadas para aproximar o selvático amazônico da barbárie bósnia. Falo em protesto ecológico –ele aceita sem reservas, descendo a explicações técnicas: as manchas também são o produto do aproveitamento dos resíduos de tinta e metal que caíram no chão, durante a pintura. "Faço um misto de economia e reciclagem. Penso no trabalho como rastro residual de vida. Comparo manchas de pintura e manchas ideológicas."
Mas, para começo de conversa, voltemos no tempo.

Folha - Antes de vir para o Rio, estudar com Goeldi e juntar-se aos concretistas, qual era o seu horizonte artístico?
Antonio Dias - Tinha uma idéia muito mais prática da arte. Pensava sempre no desenho como ilustração. Vim para o Rio, no final dos anos 50, com a intenção de desenhar histórias em quadrinhos. Acabei desviado para a Escola Nacional de Belas Belas, onde fui aluno do Goeldi, e depois me enturmei com a geração que frequentava o Museu de Arte Moderna: Helio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Ferreira Gullar...
Folha - Como era o Goeldi?
Dias - Muito austero, noturno, sempre à espreita como uma ave de rapina, a exigir explicações sobre o que estávamos pintando.
Folha - Foi ele o maior responsável pela sua tendência para uma arte mais conceitual e reflexiva?
Dias - Um dos responsáveis. Houve outros. Pedro Geraldo Escosteguy, que era meu sogro na época, foi fundamental na minha formação teórica e formal.
Folha - E os militares, foram os maiores responsáveis por sua ida para a Europa?
Dias - Não fui para a Europa como exilado político. Havia um prêmio, da Bienal de Paris de 1965, à minha espera. Mas, embora o pessoal das artes plásticas não sofresse pressão da ditadura, naquele momento, descobri que o Dops não queria que eu saísse do país. Fui obrigado a comprar um passaporte. Quase tive de voltar para o Brasil com ele em 1968, mas fui salvo por um colecionador italiano, que me convidou para a Bienal de Veneza daquele ano. E aí me estabeleci na Itália.
Folha - Por que você teve de sair de Paris de repente?
Dias - Em plena agitação de maio de 68, o crítico Pierre Restany organizou uma reunião para decidir se os artistas ocupavam ou não o Museu de Arte Moderna de Paris. Ele próprio me convidou para a reunião. Cheguei ao encontro bastante atrasado, mas, ainda assim, a polícia me fotografou. Mais tarde, quando fui renovar meu visto de permanência, as autoridades me deram alguns dias para deixar o país. Por sorte, apareceu o tal colecionador italiano.
Folha - Quantos anos você ficou longe do Brasil?
Dias - Só voltei em 1972, rapidamente, no auge do desbunde. Levei um susto tremendo com aquilo. Havia deixado o país numa época de agitação política e artística, e o reencontrei num estado de apatia generalizada. Depois de 1974, passei a achar que deveria vir aqui com mais frequência. Cheguei mesmo a planejar um esquema: seis meses lá, seis cá –ou, então, três lá, três cá. Até agora não deu certo. Aqui me sinto isolado de certos contatos, que são bem mais rápidos na Europa.
Folha - A condição de estrangeiro não o aflige?
Dias - Não. Sempre fui estrangeiro. Sou estrangeiro em qualquer lugar, inclusive no Rio. A única terra que considero minha é o Nordeste. Quando penso num ambiente ideal, o que me vem à cabeça é uma praia do Nordeste.
Folha - De que forma esse "estrangeirismo" influencia o seu trabalho?
Dias - Há quem diga que eu não "pinto brasileiro", que virei um pintor europeu. Não é assim. Os europeus continuam me achando um pintor sul-americano, identificando em meus trabalhos uma presença marcante de brasilidade.
Folha - E sua relação com a música?
Dias - Peguei o auge da bossa nova quando cheguei ao Rio, no final dos anos 50, e frequentei todas aquelas boates do Lido e do Beco das Garrafas. Depois, fiz amizade com quase todo mundo da música popular. O cenário do primeiro show do Chico Buarque no Rio, por volta de 1965, era de minha autoria. Foi uma época de grande efervescência e interação cultural, com músicos, cineastas e artistas plásticos muito ligados uns aos outros.
Folha - Na Europa, você fez algumas experiências cinematográficas.
Dias - Em super-8. Eram filmes caseiros. Todos experimentais, em cima da questão do cinema, da pintura e da imagem. Trabalhei quatro anos quase que exclusivamente com esses filminhos, que foram exibidos em mostras especializadas e vendidos para cinematecas e alguns colecionadores.
Folha - Na linha de Stan Brakhage ou de Andy Warhol?
Dias - Não exatamente. Mas eu adoro Brakhage. Sempre me interessei muito por cinema experimental. Assim como me interesso bastante por teatro experimental. O outro teatro, o convencional, acho enfadonho.
Folha - Milão foi um deslumbramento para você, não?
Dias - Era um grande centro de agitação artística quando me mudei para lá. Inúmeras galerias, muitos colecionadores. Antes de expor nos EUA, os artistas americanos de vanguarda iam primeiro a Milão, para uma espécie de crisma. Foi lá que conheci, ainda no início de suas carreiras, Bob Wilson, Laurie Anderson, Philip Glass, Steve Reich, Trisha Brown e outros artistas minimalistas.
Folha - Que artistas plásticos você destacaria como fundamentais na atualidade?
Dias - Ainda fico com Josef Beuys. Estudo muito o trabalho dele. Tivemos um bom relacionamento e não vejo nenhum outro comparável.
Folha - E Iberê Camargo, foi fundamental para as artes plásticas brasileiras?
Dias - Ele foi um artista de conduta exemplar. Além da qualidade plástica fantástica, sua obra era um produto de muita intensidade. Seu último período não me agrada tanto. Tem uma dramaticidade que vem de outra área e que não me perturba. Mas sua morte foi, sem dúvida, uma grande perda.
Folha - Já ouvi você elogiar a crítica brasileira. Era média ou você realmente a tem em alta estima e consideração?
Dias - Acho a crítica de artes plásticas praticada no Brasil muito preparada e erudita. Se ela soa complicada para o grande público, não há o que fazer. Não é fácil você ler um ensaio sobre a obra de Joyce ou Thomas Mann, que já em si são trabalhos complexos. Qualquer área do conhecimento humano passa por isso. Você não vai entender mais de antropologia só porque descende do macaco.

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