São Paulo, sábado, 20 de agosto de 1994
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Patinando com cãibra

JOUÉ MACHADO

JOSUÉ MACHADO
"Patinhar" é variante ou corruptela de "patinar"?, pergunta o leitor Carlos Marinetti de Sousa, de São Paulo, SP. Patinar e patinhar são variantes. Variante é uma variação de forma sem alteração de sentido: cãimbra, cãibra; sapê, sapé; corruptela, corrutela.
Por isso está certo dizer que os políticos jamais patinam ou patinham na lama, e que a Justiça seria incapaz de patinar ou patinhar no próprio corporativismo, que, aliás, não existe.
Patinar tem duas acepções ou significados. 1. forma de envelhecimento natural ou artificial. 2. deslizar, escorregar, rodar com patins. É claro que o significado mais comum, o de deslizar, escorregar –primeiro com patins, depois em relação a um veículo, quando as rodas giram sem que ele se mova, por fim na política, no amor, na vida– cresceu tanto que quase sufocou patinhar. Daí se usa o verbo patinar com muito mais freqência do que patinhar.
Patinhar significa agitar a água como fazem os patos, bater na água, deslizar na lama ou em material parecido, como não fazem os políticos; também se diz dos veículos, quando as rodas giram sem que eles se movam; nesse sentido, patinhar é anterior a patinar. Conclui-se que, fora o movimento típico dos patos, patinhar tem o mesmo significado de patinar.
Quanto à corruptela, é o modo errado de escrever ou pronunciar uma palavra ou locução (grupo de palavras). Corruptela quer dizer abuso, corrupção; daí corruptela.
O senador Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, sempre fala "própio"; ele pensa muito depressa e não dá tempo à língua de dar a voltinha necessária para enunciar corretamente próprio.
"Poblema" também é corruptela de "problema", palavra difícil de pronunciar para milhares de pessoas que nem pensam tão depressa como FHC. Muitos, inclusive nossos pais-da-pátria, falam "poblema". Palavra mais difícil o deputado Delfim Netto escreveu numa quarta-feira cinzenta nesta Folha: "opróbio"; guloso, papou um "erre" de opróbrio. Em compensação, semanas depois um articulista político usou um "erre" a mais para escrever que o pefelê sempre esteve "incrustrado" no poder.
O deputado Aloizio Mercadante fez coisa parecida. Disse "indentificar" várias vezes durante os trabalhos da CPI do Orçamento que acabou para sempre com os "mãos leves" do Congresso; agora estamos livres deles, não é?
"Mortandela", "previlégio", "beneficiência", "íbero" são outras corruptelas com que trombamos todos os dias. Sabemos todos que se devia dizer e escrever problema, opróbrio, incrustar, identificar, mortadela, privilégio, beneficência, ibero.
"Acho de que", "penso de que", "espero de que" e semelhantes –como dizem o Lula, o governador Fleury e metade dos políticos– poderiam ser apelidados de corruptelas sintáticas (erros de relação entre as palavras na frase). Mas tais enganos foram batizados de solecismos.
Não importa o nome, esses senhores deveriam dizer acho que, penso que, espero que, porque os verbos transitivos diretos dispensam a pinguela da preposição de para receber o complemento. "Penso que vai ser eleito o mais honesto.", "Espero que o Delfim escreva opróbrio", "Acho que o senador Marco Maciel é perseguido pelo poder por causa de sua silfídica silhueta sinuosa."
Quem tiver paciência, aliás, poderá colher dúzias de corruptelas de todas as grandezas no instrutivo horário eleitoral. Melhor do que isso: com alguma liberdade poética pode-se até dizer que alguns dos candidatos são eles próprios corruptelas.
Sim ou não?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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