São Paulo, sábado, 20 de agosto de 1994
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Temores do Vaticano

SILVIA PIMENTEL ; JACQUELINE PITANGUY

SILVIA PIMENTEL e JACQUELINE PITANGUY
O governo brasileiro não feriu a Constituição, em nenhum de seus artigos, ao endossar o documento preparatório da ONU à Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento que se realizará no Cairo, de 5 a 13 de setembro próximos.
Aliás, este documento reforça princípios aceitos na sociedade brasileira e expressos no artigo 226, parágrafo 7, da Constituição que estabelece "O planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito".
Este endosso foi dado após amplo diálogo do governo com a sociedade, através de seminários sobre os vários temas da agenda da conferência, em que participaram órgãos públicos, meios acadêmicos, ONGs e movimentos envolvidos com estas questões.
Sustenta-se nas seguintes constatações: a rápida e intensa queda de fecundidade, registrada nos últimos anos; as transformações significativas na estrutura e composição das famílias; as modificações na distribuição espacial da população; o alto custo social da transição demográfica brasileira e o incremento da participação da mulher no mercado de trabalho; o reconhecimento dos direitos reprodutivos como parte intrínseca da cidadania; a abordagem da questão ambiental a partir do conceito de desenvolvimento sustentável e a atribuição de prioridade a promoção do desenvolvimento econômico e social em vez do estabelecimento de metas demográficas quantitativas.
Esse endosso apóia-se também no documento "Consenso Latino-Americano e do Caribe sobre População e Desenvolvimento", que se originou na conferência sobre o tema realizada no México em 1993.
O Brasil anuiu a esse consenso reiterando o compromisso de reconhecer os direitos reprodutivos como direitos humanos básicos; assinalando sua preocupação com as causas estruturais que provocam os movimentos migratórios em massa e com a proteção dos direitos dos migrantes; enfatizando a importância de que o conceito de "direito ao desenvolvimento" seja fortalecido e incorporado como um dos princípios orientadores do Plano de Ação a ser adotado no Cairo; conclamando os países doadores a aumentarem substancialmente suas contribuições para programas de população na América Latina; considerando a degradação ambiental decorrência da irracionalidade dos modelos vigentes de desenvolvimento por fim, favorecendo a idéia de que sejam propostas mudanças na educação e em serviços voltados para a sexualidade e reprodução dos adolescentes.
É inegável que a grande polêmica desta conferência, que abarca temática tão ampla, está sendo instigada pela ação do Vaticano, centrada no objetivo de evitar que este plano possa, de alguma forma, respaldar concepções de família diversas da família unicelular, bem como possa significar um respaldo à interrupção da gravidez em toda e qualquer circunstância.
Ao reduzir esta grande discussão internacional a embate tão simplificador, o Vaticano desconsidera a riqueza e a complexidade da problemática sobre direitos e saúde reprodutiva que contempla princípios ordenadores do próprio conceito de democracia, autonomia, pluralismo e cidadania, pelos quais as mulheres têm tanto lutado.

SILVIA PIMENTEL, 54, é professora de filosofia do direito da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), membro do conselho diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Cladem (Comitê Latino-Americano para a Defesa dos Direitos das Mulheres).
JACQUELINE PITANGUY, socióloga, diretora do Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação, Ação) e membro da Comissão de Cidadania e Reprodução.

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