São Paulo, sábado, 20 de agosto de 1994
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Nem feminismo nem religião

LUIZ FLÁVIO GOMES

A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, que será realizada no Cairo (Egito) em setembro próximo, pela primeira vez explicitamente procurará discutir a política populacional dentro do contexto mais abrangente da política de desenvolvimento socioeconômico, guiada pela meta de "melhorar o nível e a qualidade de vida da população".
As conferências anteriores (Bucareste e México) permitiram a elaboração de um Plano de Ação Mundial, que deve ser reformulado e atualizado.
Para tanto o governo brasileiro preparou um documento oficial (relatório), do qual se encarregou um Comitê Nacional, onde se sugere: o desenvolvimento econômico sustentável, inclusive nos países avançados, a reafirmação dos direitos da mulher, especialmente os reprodutivos, igualdade de oportunidades, respeito às minorias, a reafirmação do planejamento familiar etc.
O conteúdo e o espírito das propostas, em princípio, não confrontam com nossa Constituição, salvo no que toca a um eventual propósito, fortemente apoiado pelo movimento feminista, no sentido de uma ampla legalização do aborto, "como conquista importante para o livre exercício dos direitos reprodutivos".
Nossa Carta Magna expressamente nada diz sobre o aborto: não proíbe nem permite. Deixou o assunto para a legislação ordinária.
Ocorre que em 1992 entrou em vigor no Brasil a Convenção Americana sobre Direitos Humanos que, em seu art. 4, nº 1, determina a proteção legal à vida, em geral, desde a concepção, enfatizando que "ninguém pode ser privado dela arbitrariamente".
Referida convenção, que encontra amparo constitucional no art. 5, parágrafo 2º, da Constituição Federal, sinaliza ao mesmo tempo tanto a proibição do aborto "livre" (desmotivado) como a necessidade, para a sua realização legal, de uma justificativa respaldada na finalidade de se tutelar outro bem jurídico de semelhante ou maior valor que a vida do feto.
A complicada e controvertida questão da legalização do aborto, em suma, passa pela chamada teoria do balanceamento dos valores em conflito. Para salvar a vida ou a saúde física ou mental da gestante justifica-se o aborto; do contrário, não.
Com isso fugimos dos radicalismos (feministas ou religiosos) e podemos concluir: o governo brasileiro, por ora, atua constitucionalmente. Mas se na Conferência do Cairo sustentar alguma tese radical, extremada, sua decisão será tendencialmente inconstitucional.

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