São Paulo, segunda-feira, 22 de agosto de 1994
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Crítica sem crime

DALMO DE ABREU DALLARI

Quando um cidadão indignado se manifesta publicamente criticando o mau funcionamento de uma instituição pública está exercendo o direito constitucional de liberdade de opinião e expressão e prestando um serviço à sua comunidade.
E, como é evidente, a avaliação dos personagens que pretendam defender pessoas e práticas condenáveis pela ética do povo não será elogiosa, o que não significa que o objeto da crítica sejam esses personagens ou que a opinião negativa configure um crime.
Essas considerações se aplicam ao caso suscitado pela publicação de um artigo na Folha, no qual o professor Roberto Romano manifestava sua indignação ao tomar conhecimento, pelo noticiário da imprensa, de que uma funcionária do Congresso agia nas dependências do Parlamento como intermediária de encontros com prostitutas.
Fazendo comentários a respeito do assunto, o autor procurou ressaltar os pontos negativos daquela ocorrência. Na conclusão externou a esperança de que os parlamentares que, por ação ou omissão, não resguardam a dignidade do Parlamento não sejam reeleitos.
Assim, portanto, o objetivo do artigo era contribuir para que os leitores percebessem a gravidade daqueles fatos e ficassem alertados para a necessidade de escolherem melhores representantes.
Reagindo a esse artigo, o deputado Roberto Cardoso Alves representou ao Ministério Público, dizendo-se atingido em sua honra e vislumbrando ali um crime de imprensa.
Houve a apresentação de denúncia, afirmando-se que o autor estaria enquadrado nos artigos 21 e 22 da lei nº 5.250 de 1962, a Lei de Imprensa. E agora o assunto está pendente de julgamento, o que não impede que se faça uma apreciação pública do caso, que não é sigiloso e envolve vários pontos de inegável interesse público.
O conjunto das circunstâncias e o teor do artigo permitem, desde logo, afirmar que o professor Roberto Romano não teve qualquer propósito de ofender o deputado Cardoso Alves, que foi mencionado de passagem, em poucas linhas, por sua atuação no caso.
Sendo professor de filosofia política, pareceu-lhe absurdo que no Parlamento, instituição fundamental numa democracia, ocorressem fatos daquela natureza. E em defesa da ética, bem como defendendo aquela instituição, preconizou a correção pelo meio democrático e constitucional, que é a via eleitoral.
Examinando-se o pequeno trecho do artigo que faz referência ao deputado, verifica-se que o articulista não citou qualquer fato que já não tivesse sido divulgado pela imprensa.
E fez comentários negativos sobre atitudes e palavras do deputado que também eram do conhecimento público e que já tinham sido objeto de avaliação negativa em grandes veículos de comunicação de massa.
No caso em questão o deputado, de quem a funcionária acusada tinha sido assessora de gabinete no Ministério da Indústria e Comércio, limitou-se a fazer um discurso criticando a imprensa pela divulgação dos fatos. Enquanto isso, seu próprio partido, cuja liderança a funcionária passara a assessorar, decidiu imediatamente demiti-la, reconhecendo que havia erro grave.
As expressões usadas no artigo do professor Romano e que foram tomadas como base da acusação da prática de crime contra a honra do deputado são as seguintes: "Um dos maiores promotores da licença política, o gênio criador do blasfemo 'é dando que se recebe"'.
Não se perca de vista que o articulista é professor de filosofia política e percebe como é negativo e prejudicial o comportamento dos políticos que trocam seu apoio por benefícios pessoais ou partidários, pondo em plano secundário os interesses do povo e o programa de seu partido. E foi exatamente para se defender de críticas que lhe haviam sido feitas por esse comportamento que o deputado usou a expressão "é dando que se recebe".
Esse uso foi evidentemente deturpado, como qualquer pessoa razoavelmente inteligente e informada logo perceberia, pois se trata de um preceito franciscano do mais alto valor moral e não de simples regra oportunista.
Sendo também cristão e adepto das idéias de São Francisco, o articulista condenou esse deslize do parlamentar, como já havia sido feito por muitos outros comentadores.
Confrontando-se todos esses elementos com os artigos 21 e 22 mencionados na denúncia contra ele apresentada, pode-se concluir com segurança que o professor não cometeu qualquer crime.
Com efeito, diz o artigo 21 que é crime "difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação". O artigo questionado não imputou qualquer fato ao deputado, limitando-se a comentar os fatos noticiados pela imprensa.
E o artigo 22 define como crime "injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro". O que o artigo contém são críticas à maneira pela qual o deputado desempenha seu mandato político, sem que o articulista tenha inventado ou distorcido qualquer fato.
Os comentários, que não se referiram à honra pessoal do deputado, estão rigorosamente nos limites previstos no artigo 27 da Lei de Imprensa, segundo o qual: "Não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação: III) noticiar ou comentar, resumida ou amplamente, projetos e atos do Poder Legislativo, bem como debates e críticas a seu respeito; VIII) a crítica inspirada pelo interesse público".
O professor Roberto Romano pode ter sido muito áspero em sua crítica, mas seguramente não praticou crime.

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