São Paulo, quinta-feira, 25 de agosto de 1994
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Ferrara cria inferno em 'Olhos de Serpente'

BIA ABRAMO
EDITORA DA ILUSTRADA

"Olhos de Serpente" não fez uma boa carreira nos cinemas brasileiros. Não é exatamente um filme agradável: perversão, drogas, degradação e violência são alguns de seus ingredientes principais.
Com essa receita, é fácil ter a tentação de incluí-lo naquela categoria de filmes cult que se contentam com a exposição quase obscena da degenerescência do gênero humano, como se essa fosse a única atitude decente e inteligente num mundo em desintegração.
Isso se "Olhos de Serpente" não fosse dirigido por Abel Ferrara, um diretor obcecado por culpa e, evidentemente, expiação. Ou seja, a contemplação da queda não se faz sem o desejo e, em menor medida, a possibilidade da superação, da transcendência.
Harvey Keitel interpreta um diretor que está filmando a história de um casal em crise. Madonna e James Russo, o casal, tiveram uma vida à base de sexo desregrado e drogas, até que Madonna resolve cair fora e se converte ao catolicismo. O marido não compreende a guinada da mulher, se sente traído e furioso. O diretor, por sua vez, também está enfrentando uma crise conjugal –enquanto a mulher cuida do filho, ele transa com todas as atrizes que cruzam o seu caminho.
Os diferentes planos –o filme, as relações entre os personagens dentro filme, as invejas e disputa entre atores e diretor, a vida pessoal do diretor e dos atores– se entrecruzam e se confundem numa promiscuidade sufocante. O filme dentro do filme vai tomando a história e espalhando sua doença.
Harvey Keitel parece que nasceu para os papéis dos filmes de Ferrara. Já em "Vício Frenético", outra incursão do diretor nos escombros da alma humana, Keitel se supera como o policial viciado em drogas que corre direto para o abismo. Aqui, ele é quase um alter ego de Ferrara.
A surpresa de "Olhos de Serpente" é Madonna. Ferrara faz gato e sapato dela –e ela devolve à altura. Madonna faz piadas sobre louras burras, transa com todo mundo, é humilhada, ofendida e espezinhada. Mas também aparece como a pecadora arrependida, de uma religiosidade sofrida e terrivelmente deslocada. Um achado.
Se o primeiro filme de Ferrara, "Vício Frenético", resvala em maneirismos do submundo, "Olhos de Serpente" consegue se livrar desses pecadilhos. E, ainda, criar um inferno na Terra, nos outros e, sobretudo, em nós mesmos.

Vídeo: Olhos de Serpente
Direção: Abel Ferrara
Elenco: Harvey Keitel, Madonna e James Russo
Lançamento: Paris Filmes (011/864-3155)

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