São Paulo, quinta-feira, 25 de agosto de 1994
Próximo Texto | Índice

Um gato que ruge

RICARDO SEMLER

Todo dia sai lista. As 300 maiores da Folha, "Melhores e Maiores" (hoje), "Fortune 500", "Forbes" e "Business Week". À primeira vista, uma comemoração de desempenhos empresariais. À segunda vista, lendo com mais cuidado, comparações que fazem os pêlos do braço levantarem.
Vamos pegar pela lista das 1.000 empresas mais valiosas do mundo, compilada pela irrefutável "Business Week". De um golpe só, destrói-se o mentiroso mito do potente empresário brasileiro.
Sentem-se para a primeira notícia: se somarmos Votorantim, Bradesco, Rede Globo, Camargo Corrêa, Pão de Açúcar, Brahma e Antarctica, mesmo assim não chegaremos ao valor de uma única rede americana de lojas de artigos para a casa, a Home Depot!
É isso mesmo. Essas empresas brasileiras, que empregam um quarto de milhão de pessoas não conseguiriam comprar, somando todos os seus patrimônios, esta rede de armazéns de móveis e utensílios.
Covardia, então, apelar para o caso dos supermercados Wal-Mart como fonte de comparação já que, para comprar esta empresa, as cem maiores empresas privadas do Brasil teriam que se desfazer de seus patrimônios.
Outro exemplo: a Rede Globo, que se vangloria de ser a quarta maior rede do mundo (erroneamente, já que está longe disto), teria de criar mais 14 Redes Globo, do mesmo tamanho, para então poder comparar o seu valor ao de um único grupo latino-americano do ramo, a rede Televisa, do México.
Mas em terra de caolho... Claro, alguns dirão que nossas empresas são poderosas para o nível do Brasil, mas isso convenientemente esqueceria que somos a décima economia do mundo.
Outros países de população menor do que o Estado de São Paulo, e desenvolvidos muito depois, como a Austrália, têm hoje dez vezes mais valor (na soma das empresas privadas nacionais na lista) do que nós.
O mesmo é verdade em se tratando da ilhota Hong Kong, e está prestes a se tornar fato em relação a países de pouca significação, como a Malásia.
Só faltava a confirmação final, trágica. A soma do valor das 1.000 maiores empresas do Brasil não equivale a de uma única do Japão, a Mitsubishi, cotada em mais de US$ 300 bilhões.
Covardia comparar o Brasil com o Japão, mesmo escolhendo uma só de suas empresas? Pois não era assim nas décadas de 40 a 70, quando o Brasil era o país que mais havia crescido no pós-guerra.
Hoje, de acordo com o expert professor Kanitz, compilador da "Melhores e Maiores", as 500 maiores empresas privadas do Brasil valem cerca de US$ 90 bilhões, o que equivale a uma única Shell holandesa, ou uma GE norte-americana, e nada mais.
Assim, todos os nossos 500 poderosos Raul Pelegrini teriam que se juntar, vender todas as suas empresas, para então comprar, digamos uma Esso (Exxon).
A posição do Brasil só não é mais insignificante em razão da ajuda das estatais. Se não fosse pelas Telebrás, Eletrobrás, Petrobrás, e outras tantas brás da vida, que representam quase 90% das brasileiras que cabem na lista, o nosso país não estaria representado nem mesmo entre as 30 maiores potências do mundo.
Traz um sorriso aos lábios quando ouvimos os empresários brasileiros clamando pela total privatização. Para comprar qualquer uma das grandes estatais brasileiras, seria necessária a totalidade das fortunas dos nossos 50 mais endinheirados empresários.
O que nos traz a outro ponto interessante, o Brasil é um dos raros países onde a fortuna pessoal dos empresários supera o valor da empresa. Que curioso.
Nos EUA, onde o Bill Gates vale US$ 4 bilhões, sua empresa vale US$ 30 bilhões, e onde o Sam Walton vale US$ 3 bilhões, sua empresa tem um patrimônio de US$ 54 bilhões. Aqui não.
O Roberto Marinho se gaba de estar nas listas da "Fortune" e "Forbes" por US$ 1 bilhão (aliás, na subcategoria "Outros"), mas sua empresa vale apenas metade disto. O mesmo acontece implacavelmente com as 30 maiores fortunas individuais do país –alguns dos quais se declaram isentos ao Leão.
Patrão rico, empresa pobre, um sintoma de mentalidade de Terceiro Mundo onde o evitar do fisco, a amizade colorida com os políticos, e o aproveitamento da falta de força dos funcionários são muitas vezes veículos para o enriquecimento pessoal do patrão.
Isso não quer dizer que não há empresários que sejam grandes brasileiros e incansáveis trabalhadores, mas demonstra que há algo de muito errado no direcionamento do setor como um todo.
Depois de décadas de relações incestuosas com o governo, o empresariado brasileiro, que teria tudo para ser competitivo e bem-sucedido, se reduziu a um grupo de ricos em terra de miseráveis, escondidos em suas mansões cercadas por seguranças nervosos.
O país não saiu do lugar, o valor de nossas empresas caiu no ranking mundial e a vasta maioria das empresas brasileiras agora tem de se associar, com urgência, a grupos de real poder de fogo, estrangeiros.
Gerar riqueza individual como meta e a qualquer custo, em vez de fortalecer a empresa como veículo de progresso, nos trouxe a este triste estado. O Brasil vale muito pouco no mundo.
Imaginar que somos hoje mais respeitados por causa do tetra é uma ilusão amarga. Apenas serviu para reforçar a tese de que o Brasil só é forte mesmo nos itens futebol, samba, floresta e favela. No ramo empresarial é um gatinho simpático e nada mais.
Claro que o fabuloso potencial continua inalterado. Oxalá que os ventos de modernidade soprem por entre as orelhas cheias de cera que reduziram o Brasil a esta minguada massa de vastos potenciais não realizados. Oxalá.
Afinal, ficar rugindo com boquinha de gato só impressiona os que usam o tapa-olho da vaidade, digno de velhos coronéis da indústria. Oxalá, senão... miau.

Próximo Texto: A voz do dono
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.