São Paulo, quinta-feira, 25 de agosto de 1994
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A voz do dono

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

"As elites são mais hábeis, mais fortes, mais astuciosas no jogo do poder. Mas não são 'melhores', no sentido absoluto".(Ettore Albertoni)
Meios de comunicação e elites políticas, como face mais visível das elites econômicas, operam por toda parte em "fortíssima contiguidade", para usar expressão de Roppo e Zaccaria (Howard Kurtz chega a falar em "incestuosas relações").
Inclusive no Brasil, onde o quadro é particularmente grave porque as corporações de comunicação cresceram demais e porque quase todas as emissoras de TV e rádio de alcance limitado já estão em mãos de forças políticas locais.
Estatísticas da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) revelam que, ao tempo da Constituinte, 123 congressistas controlavam diretamente emissoras de rádio ou TV. Uma agenda política séria para esse fim de século 20 tem de definir algum tipo de controle democrático ao poder brutal que os meios de comunicação acumulam, hoje, no Brasil.
Em artigo recente ("Horário nada gratuito", 3/08) tratei de um entre os muitos privilégios desfrutados pelas grandes corporações de comunicação (ver também nosso "Informação e Poder", Ed. Record), referindo os níveis fantásticos de remuneração dos horários eleitorais ditos gratuitos.
Como seria de esperar, as grandes redes de televisão não gostaram de ver exposto ao público o escandaloso sistema de "ressarcimento fiscal" que construíram com a cumplicidade de sucessivos governos; e responderam com artigo assinado por funcionário de uma delas ("O ônus do horário eleitoral gratuito", 16/08).
O referido artigo não contestou as informações relevantes do texto anterior: de que o sistema de ressarcimento representa ganhos adicionais sobre o simples pagamento ou crédito tributário às empresas; e de que é muito consistente o tempo "ressarcido" a esses grupos, todos os anos; sendo em 1992 de 22 horas, 57 minutos e 30 segundos.
De parte o evidente despreparo desse preposto para um debate pelo menos educado, temos em meio a um texto indigente dois temas que merecem desenvolvimento.
O primeiro é econômico, e refere a necessidade invocada por nossos meios de comunicação de atuar livremente no mercado. Algo instigante porque essas corporações que defendem o mercado em relação ao horário eleitoral são as mesmas que não o querem, quando reivindicam privilégios tributários.
Sem contar outros benefícios que podem resultar de ter por trás o poder da mídia, eles não pagam ICMS ou ISS sobre a programação, não pagam IPMF (portaria 9/94 do MF), têm imunidade tributária para IPI (art. 18 do decreto 87.981/82), têm garantido o subsídio do papel de jornal (Constituição, art. 150, VI, d). E assim o Estado, que cobra tributos em gêneros de primeira necessidade, banca indiscriminadamente esses subsídios. Um escândalo.
O segundo tema é institucional, referindo as relações entre democracia e meios de comunicação.
A compreensão de que haverá algum tipo de relação necessária entre interesses coletivos e interesses das grandes corporações de comunicação –que seria o fundamento de valor dessa visão– é, para dizer o mínimo, ingênua. Sendo mesmo curioso esse repentino interesse pela democracia de um setor que sempre esteve mais interessado em só ganhar dinheiro.
O jogo é, por tudo isso, mais pesado; e nos faz refletir se nosso modelo de meios de comunicação representa um instrumento eficiente de democratização da informação.
Mas a sugestão de utilizar o sistema norte-americano como modelo é interessante, lá temos por exemplo uma ampla oferta de informação que impede se possam construir monopólios de fato. Nova York tem 358 canais de televisão (508, se contarmos o cable da Warner, já em testes no Queens).
Temos também vasta regulamentação definindo limites; e temos a vedação da multimídia com a "cross-ownership rule" (seção 73.3555 (D)3 da Commission's Rules da FCC), impedindo a concentração por um único proprietário –em cada um dos 212 mercados comerciais em que para esse fim se divide a América– de broadcast e newspaper.
Simplificando, lá ou se tem rádio, ou se tem televisão, ou se tem jornal, proibida a acumulação de mais de um desses veículos.
A aplicação dessa regra no Brasil teria o mérito de permitir a reestruturação de nossos meios de comunicação, dando inclusive efetividade à Constituição brasileira, que expressamente determina não possam ser os meios de comunicação, direta ou indiretamente, "objeto de monopólio ou oligopólio" (art. 20, parágrafo 5º).
Quem sabe então poderíamos inaugurar, em nossa civilização generosa e tropical, o que Ken Auletta definiu como a democracia do futuro, a "videodemocracia".

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