São Paulo, segunda-feira, 5 de setembro de 1994
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Conheça a íntegra da carta

Entreguei na tarde de ontem ao presidente Itamar Franco meu pedido de dispensa do cargo de Ministro da Fazenda. Sei que devo uma explicação aos brasileiros que me honraram com a sua confiança.
Na noite da última quinta-feira, uma conversa de caráter inteiramente particular que eu mantinha com o jornalista Carlos Monforte foi levada ao ar sem o meu conhecimento ou consentimento. Fui vítima de uma falha eletrônica.
Aguardava o momento de começar a vigésima-quinta entrevista daquele dia em que o real completava dois meses. Estava exausto. Enquanto esperava que fossem sanados problemas técnicos da emissora, tive uma conversa informal com uma pessoa a que estou ligado por laços de parentesco e antiga convivência. Todos entendem que conversas desse tipo nem sempre se orientam pela exatidão dos conceitos ou pelo cuidado na apresentação dos argumentos.
Todos sabem também que, ao longo dos últimos meses, vinha-me dedicando com grande esforço àquela parte da minha tarefa que julgava ser a mais importante: a divulgação do Plano Real e o trabalho de informar e orientar a população sobre as mudanças na economia. Nessa verdadeira maratona que incluiu muitas viagens pelo país e um sem-número de conferências, palestras e entrevistas, fui provavelmente vítima, além do cansaço físico, de um processo em que a excessiva exposição à mídia e ao calor popular inflaram minha vaidade.
Assumo inteira responsabilidade por aquele momento de fraqueza que me levou a dizer palavras que não refletem o que penso ou o que sinto. Em alguns daqueles comentários nem eu mesmo me reconheçco. Posso ter dito coisas irrefletidas, mas estou seguro de que, na minha gestão, não fiz nada de errado.
Sem querer justificar o injustificável, repudio os trechos da conversa em que deixo transparecer uma opinião vaidosa e arrogante sobre mim e sobre o meu trabalho à frente do Ministério da Fazenda. Não é esse o comportamento que sempre tive, não é essa a minha regra de conduta.
Do que aconteceu, retiro, contudo, uma lição de humildade. Ao contrário do que o apoio popular sugere, sou um ser humano como qualquer outro, com as mesmas limitações e defeitos, com os seus momentos de fraqueza.
E, por isso mesmo, não hesito em pedir desculpas quando erro. Faço-o agora, por tudo o que possa ter decepcionado quem quer que seja. Faço-o, também, pela referência aos empresários brasileiros ao generalizar comportamentos individuais que já havia condenado.
Não posso deixar de explicar algumas passagens da conversa tornada pública. Minhas palavras, pela maneira confusa e entrecortada com que ficaram registradas, estão-se prestando a interpretações e acusações precipitadas.
Sei que provoquei um choque quando disse que não teria escrúpulos em mostrar o que é bom e esconder o que é ruim. Do que estava falando? Estava simplesmente me referindo à conveniência de divulgar, a cada semana, o IPC-r. Contrariamente a uma visão técnica, não hesitaria em divulgar os índices semanais se isto servisse ao propósito de manter a tendência de baixa dos preços. Tinha plena convicção de que, caso não mostrasse a tendência fortemente declinante da inflação, conforme indicavam todos os demais índices, estaríamos dando munição para aumentos preventivos de preços, com base em uma inflação que na verdade não existiu. Tinha em mente o caso de algumas empresas denunciadas ao Ministério da Fazenda por tentarem antecipar aumentos de preços antes mesmo da divulgação oficial do IPC-r de agosto.
Mesmo considerando que a primeira acepção da palavra "escrúpulo" é "hesitação ou dúvida da consciência", sem qualquer conotação moral, compreendo que a frase em que usei a palavra, citada fora do contexto e sem a explicação dada por esse pano-de-fundo, tenha causado surpresa e consternação.
Em nenhum momento, menti à população. Em nenhum momento, escondi informações. Em nenhum momento, manipulei ou deixei que manipulassem índices de preco. Em nenhum momento, deixei de me conduzir de acordo com princípios éticos e religiosos que sempre pautaram a minha vida particular e pública.
Quando fiz o comentário presunçoso de que "o governo precisa muito mais de mim do que eu dele", estava respondendo a uma pergunta sobre minha eventual participação em futuro governo, e não no atual governo. Faço questão de retificar a impressão falsa que se criou a partir dessa passagem porque prezo de forma muito especial os sentimentos de respeito e lealdade que me ligam ao presidente Itamar Franco.
Meus comentários pessoais sobre os possíveis efeitos do Plano Real nas eleições e sobre a cobertura do plano pelos meios de comunicação não foram mais do que impressões superficiais. Eles carecem de qualquer base concreta que os possam justificar, a não ser pela associação inevitável que se tem feito entre a candidatura do meu antecessor no Ministério da Fazenda e o Plano Real, em razão de o senador Fernando Henrique Cardoso ter sido o idealizador e o executor inicial do programa de estabilização.
As minhas fraquezas não podem prejudicar o que é o mais importante neste momento, que é o êxito do Plano Real. Por isso, pedi demissão. Essa é a contribuição que posso dar à continuidade do plano e a maior demonstração de lealdade ao povo que confiou em mim.
Durante os cinco meses em que estive à frente do Ministério da Fazenda, procurei, dentro das minhas possibilidades, contribuir para a implementação de um plano que é sólido, equilibrado e capaz de trazer a estabilidade ao Brasil e acabar com o pesado sacrifício imposto pela inflação aos mais pobres.
Identifiquei na explicação do plano e na orientação das pessoas mais simples, daqueles que sempre foram esquecidos nas grandes mudanças tentadas na nossa economia, a minha principal missão.
Nunca faltei com a verdade ou com sinceridade que garantiam o único instrumento de que eu dispunha para a ação, que é a credibilidade. Fui por vezes criticado por falar demais em público, por expressar com franqueza os meus sentimentos e opiniões, por adiantar idéias fora dos procedimentos tradicionais, mas jamais por dar falsas esperanças ou criar expectativas descabidas.
Trabalhei até o limite das minhas forças, não poupando incontáveis horas extras de esforço, muitas delas roubadas ao convívio com minha família. Nos fins-de-semana em que poderia descansar, viajei pelo Brasil para levar, a Estados e cidades que há muito não eram visitados por um ministro da Fazenda, ou que nunca o tinham sido, informações sobre as mudanças na economia e uma palavra de confiança no Plano Real e na força dos cidadãos.
Procurei transformar o Ministério da Fazenda em um instrumento de mobilização social em torno dos direitos dos consumidores e da luta contra a inflação, porque acreditei desde o princípio que nada se faria sem a participação do povo brasileiro, especialmente das donas de casa, dos aposentados, dos estudantes, dos trabalhadores que finalmente começaram a ter motivos verdadeiros para confiar no futuro do país que constroem com o seu esforço.
A todos peço que sigam engajados nesta luta que é do Brasil inteiro; que não se desmobilizem nunca; que continuem a participar do Plano Real com o mesmo espírito cívico que está mudando a face do Brasil para melhor; e que dêem ao meu sucessor o mesmo apoio que me incentivou e me fez ter orgulho do que estava fazendo.
O Plano Real é uma obra coletiva da Nação e tem sua continuidade assegurada pelo êxito que já obteve, pela qualidade e competência da equipe econômica que ajudou a concebê-lo e está ajudando a implementá-lo, e pelo compromisso do governo do presidente Itamar Franco com a estabilidade econômica como condição para o desenvolvimento e a justiça social.
Se pude ter algum sucesso no exercício das minhas funções e principalmente na tarefa de informar e orientar a população, foi porque contei sempre com um grande apoio da imprensa falada e escrita deste país, muito especialmente de jornalistas que me acompanharam desde o primeiro dia. A todos dirijo uma expressão de agradecimento e faço uma homenagem sincera pelo seu profissionalismo.
Finalmente, quero reservar uma palavra de carinho a minha família, a Marisa, minha mulher, e aos meus filhos Cristina, Isabel, Bernardo e Mariana. Eles são a razão de tudo o que faço, de tudo aquilo em que acredito; deles recebo a força que me ajudou sempre e que me ajuda agora, neste momento em que posso retornar ao convívio para com eles compartilhar estas lições de vida que ainda aprendo e a satisfação pelo que pude realizar.
Ao iniciar a minha experiência no Ministério da Fazenda, no momento de receber o cargo, pedi a Deus que me desse a força da sua graça, a qual nunca veio a me faltar nestes meses. Agora que me despeço deste ministério e retorno a minha vida de funcionário e professor, quero evocar, como melhor fecho desta minha passagem pela vida pública, duas palavras de Deus na Bíblia. A primeira, que resume tudo o que sinto nesta hora, é do livro de Jó, quando o grande sofredor diz: "O Senhor deu, o Senhor tirou. Bendito seja o nome do Senhor". A segunda citação é do mesmo salmo que evoquei no dia de minha posse, o Salmo 32, que transcrevo, desta vez, de forma mais completa:
"Feliz o povo cujo Deus é o Senhor
e a nação que escolheu por sua herança.
Dos altos céus o Senhor olha e observa;
Ele se inclina para olhar todos os homens.
Ele contempla do lugar onde reside
e vê a todos os que habitam sobre a terra.
Ele formou o coração de cada um
e por todos os seus atos se interessa.
O Senhor desfaz os planos das nações
e os projetos que os povos se propõem
mas os desígnios do Senhor são para sempre
os pensamentos que Ele traz no coração,
de geração em geração vão perdurar.
No Senhor nós esperamos confiantes,
porque Ele é o nosso auxílio e proteção.
Por isso o nosso coração se alegra Nele,
Seu santo nome é nossa única esperança.
Sobre nós, venha, Senhor, a Vossa graça,
da mesma forma que em Vós nós esperamos."

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