São Paulo, segunda-feira, 5 de setembro de 1994
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Hartley reinventa thriller metafísico

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Amor, religião e dinheiro são as moedas correntes na economia ficcional de Hal Hartley. A primeira redime e a segunda, apesar dos pesares, vale mais que a terceira. Na abertura de seu filme anterior, "Simples Desejo" (Simple Men), um assaltante roubava uma medalha de Nossa Senhora do pescoço de um segurança e este, de olhos vendados, prometia ao ladrão: "Tenha fé e ela o protegerá". Em seu novo longa, "Amateur", o mais europeu dos novos cineastas americanos volta a contar com os fluidos da Madona, a original.
Ela aparece para uma ex-freira chamada Isabelle (Isabelle Huppert), designando-lhe uma missão na América, sem maiores especificações. Isabelle, que ao largar o hábito optou pela carreira de escritora pornográfica, deduz que sua missão é salvar a pele de uma atriz pornô, Sofia (Elina Lowensohn), cujo marido, Thomas (Martin Donovan), acabará caindo em seus bracos.
Antes, porém, Thomas cai da janela de um prédio, empurrado por Sofia. Ela pensa que o matou, mas ele sobrevive –com um pequeno detalhe: na queda, perdeu a memória. Sem saber seu nome nem quem é na vida, ele vaga pelo Soho até encontrar-se com Isabelle e Sofia, topando inevitavelmente com os marmanjos que as perseguem e arrastam as peripécias do filme até as fronteiras de "Acossado", "Made in USA" e outros thrillers metafísicos de Godard dos anos 60.
Tudo muito "light", é bom que se diga, e divertido. Hartley imita Godard –inclusive na opção por Huppert– mas sem o pedantismo intelectual do mestre. Econômico em citações literárias, Hartley limita-se a pôr em cena um garoto que lê a "Odisséia" de Homero (uma de suas fixações, já que os dois irmãos de "Simples Desejo" se encontravam num bar chamado Homer's), reduzindo as homenagens ao batismo de dois personagens secundários: um policial chamado Melville (como Herman Melville) e outro chamado Usher (como aquela sinistra casa de Edgar Allan Poe cuja queda já rendeu, pelo menos, dois filmes).
O título é outra brincadeira. Com o amadorismo do próprio autor, que ainda se acredita um aprendiz de cineasta, e dos seus personagens, amadores diante da vida e confusos em relação (ou "vis-à-vis", como diria Godard) a padrões de qualidade e competência. "Meus filmes são sobre pessoas que perderam bens materiais e, em função disso, tornaram-se livres", acrescentou Hartley, durante o último Festival de Cannes.

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