São Paulo, sexta-feira, 9 de setembro de 1994
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Bruno Schulz fantasia natureza harmônica

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A cabo de ler um livro difícil e prodigioso. Foi escrito pelo polonês Bruno Schulz (1892-1942) e tem o nome pouco convidativo de "Sanatório" (ed. Imago).
A doença, o declínio do corpo, o obscurecimento progressivo da mente, aparecem pouco neste volume de contos, ao contrário do que o título sugere. "Sanatório" trata acima de tudo do despertar de um menino para a força, a riqueza, a beleza da vida. Quase todos os contos narram a experiência de um garoto por volta dos dez anos de idade e as descobertas que ele faz.
E quantas descobertas fazíamos nessa idade! Eram ao mesmo tempo grandiosas e medíocres. Lembro-me de uma vez em que fui levado pelos meus pais a passar o dia na fazenda de uns parentes.
Não era propriamente verão. O verde interiorano se preparava para o calor total. Pela primeira vez na vida vi um pé de jaca: imagem do amadurecimento imenso e enjoativo que ia me tomando aos poucos, expansão escura e tuberosa, à espera desse esborrachamento final, disforme, oloroso e espojado no chão que é o contato que temos com a vida adulta.
Entrando na sala da fazenda, descobri umas penas de pavão enfiadas num vaso. A estante tinha livros de Tarzã: toda casa de campo, toda casa de praia, exige sua coleção própria de revistas velhas, de romances ociosos, de refugos literários, uma velha e boa coleção Saraiva, ou números antiquíssimos da "Seleções".
Trata-se da manifestação dessa coisa perdida, o gênio do lar. Lar estranho, lar de fins-de-semana e temporadas, coisa que se deve reencontrar imóvel, como uma reserva sentimental, a cada volta rotineira às férias de infância e de verão.
Fui digerindo a estranheza da jaca e das penas de pavão na volta para casa. O asfalto da estrada era azul. Eu tinha a misteriosa certeza de que aquele dia tinha sido inesquecível. Inesquecível exatamente por ter sido um dia em que nada aconteceu; perfeito como uma bolha de sabão, estava escrito na memória, e eu tinha consciência disso, guardei tudo o que vi como uma posse frágil, como um tesouro quebradiço.
Desta matéria é feito o livro de Bruno Schulz. Trata-se de um livro difícil, à medida que nos perdemos na extraordinária força de evocação de cada parágrafo. A narrativa se confunde, o leitor fica desatento, sente que deveria reler o parágrafo anterior, mas não relê, vai adiante, e termina o livro um pouco como nós todos terminamos a vida: sentindo que muito pouco foi aproveitado desse oferecimento milagroso e caótico, dessa profusão estranha e feliz, dessa dádiva desatenta e sem sentido.
Cada vida humana é um pouco como a viagem de Noé contra as forças do dilúvio. Cumpre guardar em nossa arca pessoal aquilo que merece reviver ainda. Somos todos uns ecologistas.
O que Bruno Schulz revive, neste livro maravilhoso, são umas poucas experiências. A descoberta de um álbum de selos; uma visita ao museu de cera; uma noite estrelada; o silêncio na loja de tecidos de seu pai.
Cada um desses assuntos é desenvolvido com um poder de imaginação, com uma força de escritor, com uma "magia" verbal absolutamente espantosa. O melhor de Bruno Schulz é quando ele descreve as mudanças climáticas, as intempéries, o transmutar das estações.
Autor pouco "psicológico" e nada interessado no "enredo", ele como que reserva suas capacidades de observação não aos seres humanos, mas aos fenômenos da natureza. O prodígio está no fato de que ele "harmoniza" a natureza. Faz de uma Lua cheia, de uma chuva, de um volteio da neve ou de uma floração de primavera um verdadeiro acontecimento, algo como um feito voluntário.
Citações não faltam. "Uma corrente de ar clara e interminável soprava por toda a amplidão do horizonte, colocava as fileiras e as avenidas sob as nítidas linhas da perspectiva, alisava-se neste sopro grande e vazio e, enfim, parava sem fôlego enorme e espelhada, como se quisesse, neste espelho tão abrangente, encerrar uma imagem ideal da cidade, uma miragem ao fundo do seu côncavo luminoso."
Ou: "a noite, como um falador importuno, acompanha o viajante solitário, fechando-o no círculo de seus fantasmas, incansável em suas invenções, disparates, fantasias –alucinando distâncias siderais, brancas vias lácteas, labirintos de coliseus e foros intermináveis. O ar da noite, este Proteu negro, que cria brincando densidades de veludo, faixas de perfume de jasmim, cascatas de ozônio, súbitos ermos sem ar crescendo como glebos negros até o infinito, monstruosas uvas de trevas repletas de suco escuro!"
Ou ainda: "Ah, o dia de outono, este velho bibliotecário, andando num roupão desbotado pelas escadas de mão e provando doces de todos os séculos e de todas as culturas! Cada paisagem lhe serve de introdução a um dos velhos romances. Como se diverte soltando os protagonistas dos antigos romances e a passear sob o céu enfumaçado e cor de mel, nesta turva e tardia doçura da luz!"
São páginas e mais páginas desse jeito. Lembram um pouco o projeto de Rimbaud, o sistemático "desregramento de todos os sentidos" de que ele falou numa carta. Aquela esplêndida, elétrica, vertiginosa página em que Rimbaud dizia ter "beijado a aurora do verão" repete-se em Bruno Schulz, a cada descrição da noite, da chegada do outono, do entardecer.
E é sempre como se os acontecimentos da natureza fossem dotados de vontade própria, como se o próprio tempo fosse um personagem do livro, capaz de seus caprichos e intenções.
Os contos de Schulz não são tão felizes quando incorrem no fantástico, na narrativa miraculosa e surrealista. Por vezes, o fantástico aparece como pura decorrência da narração: como uma metáfora prolongada (o pai do narrador, por exemplo, indigna-se e fica fora de si, transformado num enorme besouro zumbidor). Mas de vez em quando o "surrealismo" aparece com excesso. Trata-se de um recurso pobre, quando se tem a todo tempo exemplos de um "fantástico" mais simples, mais rico, nas puras descrições que o autor faz de uma madrugada ou de uma sala às escuras.
Bruno Schulz é um visionário, como Rimbaud. Vale a pena mergulhar nas suas alucinações imensas, no caos de estrelas que ele traça, nos outonos dançantes, nas noites copiosas, nos versos e nas cores que ele viu.

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