São Paulo, sexta-feira, 9 de setembro de 1994
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A campanha contra a fome na campanha eleitoral

HERBERT DE SOUZA

É intenção do candidato Fernando Henrique Cardoso, se eleito presidente, patrocinar uma campanha contra a fome inspirada nas ações governamentais do México e na campanha brasileira. As propostas de FHC merecem reflexão. Existem mais diferenças entre o México e o Brasil do que a palavra solidariedade, muito usada lá e cá, pode fazer supor. E, pelo menos por aqui, é preciso saber separar o trigo governamental, estocado nos armazéns, do pão da solidariedade da sociedade civil.
A campanha do México foi patrocinada pelo governo do PRI para se salvar de uma derrota histórica anunciada no terremoto que quase demoliu o México e abalou os alicerces do governo do PRI. Passado o terremoto, o governo descobriu a miséria e a sociedade civil, injetou bilhões de dólares em pequenas obras e apelou para a solidariedade. Foi uma campanha eleitoreira. Deu resultados para o PRI, mas não acabou com a miséria no México. Deste plano nasceu Chiapas.
O plano do México foi um "band-aid" para minorar os efeitos do chamado ajuste estrutural. A campanha contra a fome do Brasil tem o seu lado governamental através do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), onde nove ministros e 21 representantes da sociedade civil trabalham em parceria. Esse lado Fernando Henrique conhece, embora não tenha ido a todas as reuniões quando era ministro da Fazenda. E tem seu lado civil –a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida–, onde milhões de pessoas se organizam em comitês e inventam formas concretas de lutar contra a miséria neste país.
Na ação civil contra a fome e a miséria, não há governo, não há partidos, poder. Aqui o Estado não apita e o oportunismo não tem vez. Aqui não houve corrupção. Prevaleceu a solidariedade. Aqui não há aparelhamento. Não vai dar votos a ninguém, mas vai gerar um eleitor mais consciente. Esse movimento social inédito tem o apoio de 90% da população, a participação de 30 milhões de pessoas e 3 milhões de pessoas organizadas em comitês.
Se Fernando Henrique pretende fazer sua campanha contra a fome e investir bilhões de dólares, ótimo. Melhor teria sido ter feito essa proposta quando era ministro da Fazenda, quando tinha a chave do cofre e dizia que não havia dinheiro nesta república para as questões fundamentais. A melhor forma de combater a fome e a miséria é uma boa política econômica, não-recessiva, inovadora, centrada sobre a geração de emprego, a mobilização do Estado em todos os níveis e em sintonia com a opinião pública, que elegeu efetivamente a questão do emprego como prioridade fundamental.
O que o ministro Fernando Henrique não sabia e o candidato ainda não sabe é que a solução não passa pela economia e pelo profissionalismo dos que sempre produziram as condições de miséria deste pobre país rico chamado Brasil. A Ação da Cidadania não está propondo remendos, mas transformações profundas da economia, da política, do Estado, do poder. Está propondo uma nova política e não caridade pública. Está querendo inventar um novo conceito de cidadania.
Não queremos atuar na margem. Não queremos ajudar a elite a viver em paz, mas a mudar o Brasil para que todos possam viver plenamente sua cidadania. Partimos da ética, partimos da solidariedade, da política, e temos uma profunda e bem fundada desconfiança do desenvolvimento que exclui, do progresso que não dá a todos condições dignas de sobrevivência, dos ajustes que ignoram o humano. Não é esta a lógica que queremos.
Quando era ministro "da economia", Fernando Henrique não entendeu essa realidade. Acreditou na economia e achou que a campanha queria compensar no plano social o que não era possível no plano econômico. Engano. O efeito social era ruim porque a economia é péssima. A fome era e é econômica. A miséria é econômica. A decisão era política e quem fazia essa política era o próprio ministro "da economia".
O argumento que tornou o presidente Itamar um prisioneiro era que não havia dinheiro para gastar e que, portanto, nada podia ser feito. Mas as nossas reservas são de bilhões de dólares. Mas não se toca em reservas a não ser quando querem os gestores da economia sob as ordens das elites. A nossa economia é rica, mas aparentemente sem dinheiro, porque é sempre privada. Mas se o governo não tem a rubrica definida no item vacina, que morram as crianças. Mas se há decisão política de impedir este absurdo, a economia deve se subordinar a essa decisão.
Não aceito que o Estado brasileiro não tenha dinheiro para acabar com a fome e a miséria, que não tenha instrumentos poderosos para gerar empregos para milhões de pessoas e que não possa fazer tudo isso acabando com a inflação, tendo uma moeda forte, estável e confiável. Creio que tudo isso pode ser feito se houver decisão política para transformar esse objetivo em prioridade absoluta de governo. Essa é a proposta da Ação da Cidadania para todos os candidatos. Mas para que isso aconteça é preciso que o presidente da República assuma essa prioridade e que todos os seus ministros, inclusive o da Fazenda, trabalhem na mesma direção. Com ética e sem duplo discurso.

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