São Paulo, sexta-feira, 9 de setembro de 1994
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A causa da maioria

FABIO FELDMANN

Hélio Jaguaribe não é bobo nem ingênuo. Veja-se seu alentado currículo como cientista político que era até respeitado no passado. De uns tempos para cá, deu de aproveitar intensivamente as chances da vida para agradar a determinadas platéias e interlocutores.
E aí exagerou na dose, perpretando a barbaridade de afirmar, na Escola Superior de Guerra, que os índios deveriam deixar de existir durante o século 21. Com data marcada e tudo.
E ainda cometeu a injustiça de não esclarecer peremptoriamente que não falava pelo PSDB, partido que pode ter inúmeros defeitos, mas não o de assinar embaixo de uma bobagem oportunista e inaceitável dessas.
Na sequência, Jaguaribe provocou iradas e justas reações. E saiu-se com o artigo "O jardim antropológico de neolíticos" (Folha, 2/09), pretendendo colocar uma douta pedra no assunto. Ficou pior a emenda.
Na versão "light" escrita de suas afirmações, Jaguaribe faz de tudo. Invoca o nome de Rondon em vão, desfila erudição com paleolíticos, neolíticos, mistura alhos com bugalhos, os índios brasileiros e os platôs do Alto Egito. Se tivesse assistido ao "Fantástico" do último domingo, aprenderia mais sem muita falação, vendo uma reportagem simples e elucidativa sobre os índios xavantes.
Mas em seu artigo Jaguaribe revela mais do que pretendia. Ou seja: sua convicção de que Marcos Terena, que é índio, não entende nada dos interesses e desejos das comunidades indígenas. Quem entende é ele, Jaguaribe. E não só de índios, mas também de futurologia civilizatória. Sabe ele hoje o que acontecerá no final do século 21. Um verdadeiro recorde em chute.
Apesar de tudo, Hélio Jaguaribe é um intelectual. E, portanto, deveria saber quão esdrúxula é a "teoria evolutiva" segundo a qual a nossa "civilização" é um estágio mais avançado da organização humana, ao qual os "pobres índios" deveriam ter o "direito" de chegar. Aliás, não é preciso nem ser intelectual para saber que as coisas não são tão simplistas assim.
Bastam bom senso e sensibilidade para concluir que a nossa dita civilização, se atingiu um patamar inegavelmente impressionante de sofisticação tecnológica e de consumo, torna esse avanço disponível para poucos à custa de muito sofrimento humano, violência –muitas vezes também sofisticada e disfarçada– e destruição ambiental.
Portanto, é preciso muita cara-de-pau para afirmar que a sociedade industrial é qualitativamente superior à dos índios.
Jaguaribe revela-se ainda um emocionado defensor de 30 milhões de favelados, contra "determinados setores da opinião pública" que só se preocupam com "200 mil silvícolas". Puxa, Jaguaribe, nessa você pisou no tomateiro, pois, a seguir sua própria tese, uma sociedade que produz 30 milhões de favelados não pode pretender ser superior a nada. Nesse caso, em que "civilização" mais avançada os favelados teriam que se integrar para se dar bem? Em Marte, talvez?
Antes de continuar é preciso esclarecer que não se está, aqui, negando aos índios benefícios aos quais queiram ter acesso. Mas é preciso entender que essa é uma decisão voluntária das comunidades indígenas, a ser tomada no ritmo delas e de acordo com suas necessidades. Não na marra e muito menos por iniciativa de pessoas que, sob um argumento hipócrita de "solidariedade" com os índios, consideram-nos "um estágio primário" da evolução dos homens.
Desconhecem até mesmo a forte influência da riquíssima cultura indígena em nosso país e a importância de seu saber derivado da convivência com a natureza. Saber este, aliás, pilhado desavergonhadamente até hoje, sem pagamento e sem reconhecimento, pelo sistema industrial. Se querem mesmo respeitar os índios, que tal começar por reconhecer a patente de seus conhecimentos?
Mas o que interessa, nesse artigo, é tentar analisar, por trás das idéias lamentáveis do cientista político –a classe não merecia isso– por que ele e outros se sentem tão à vontade para atacar direitos indígenas ou até para decidir o que os índios querem.
A meu ver, para entender esse fenômeno, deve-se atentar para a equivocada compreensão do que são causas de minoria e o que é a vontade da maioria.
Considera-se que a defesa do meio ambiente, dos direitos indígenas, das mulheres, dos negros, dos homossexuais e outros, são movimentos de "minorias", quando se está tratando, na verdade, de demandas que são da maioria.
Tome-se o exemplo da poluição em São Paulo. Não é razoável imaginar ser este apenas um tema de interesse do movimento ambientalista face às autoridades e às fontes emissoras de poluição. Nenhum assunto é mais de maioria do que o ar que respiramos. Ocorre que, pelo fato de essa demanda ser identificada com os ecologistas, passa a ser vista como causa de minoria.
Se fizermos um exercício para dar uma única tradução a todos os movimentos aqui citados, emergirá forte, irresistível, íntegra, insofismável, a grande causa da maioria, impressa atomizadamente em cada uma das causas ditas minoritárias: a civilização real, a justiça, a possibilidade de convivência na diversidade, o respeito pelas culturas, pelas religiões, pelas formas de pensar, o poder social compartilhado e não autoritário. Em uma palavra: a paz.
A clara inversão de valores presente na questão minorias/maioria abre espaço para manifestações truculentas como a de Jaguaribe que, no afã de agradar, só servem para embolar o meio-de-campo e impedir o avanço real do entendimento entre todos os envolvidos.

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