São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Ética, ratos e outros bichos

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

Peço licença aos leitores da Folha para reproduzir aqui uma carta que recebi na semana passada, enviada por um veterinário de 39 anos que mora em São Paulo:
"Escrevo para pedir que você lance o olhar para um lado que ficou esquecido no caso Ricupero: o jornalista Carlos Monforte. Ninguém está analisando o que representa o poder da falta de ética dos jornalistas. Se a parabólica não tivesse captado a conversa, é óbvio que os cidadãos brasileiros não saberiam nada do diálogo em que o sr. Ricupero mostrou sua alma, teve seu lapso de lucidez.
"Pergunto se Carlos Monforte teria ou não o dever de nos informar sobre o que pensava verdadeiramente o sr. Ricupero. Quantos jornalistas, inclusive da Folha, não nos informam do que sabem, a verdade?
"Esse é o problema: a maior parte dos jornalistas, detentores do poder e dever de informar os cidadãos, não fazem seu trabalho. Eles são dirigidos pelo conceito de lealdade à sua condição social e não à cidadania, ao país e à verdade."

O leitor está coberto de razão. A conversa parabólica entre o agora ex-ministro Rubens Ricupero e o jornalista Carlos Monforte dominou o noticiário da semana, mas em nenhum momento a mídia de preocupou em fazer ela mesma um "mea culpa" e discutir seu verdadeiro papel nesse episódio. No diálogo que teve com o jornalista, o ex-ministro foi claro como água quando disse que suas aparições na Rede Globo seriam "um achado" para a emissora, já que ela não precisaria mais dar "apoio ostensivo" (são palavras dele também) ao candidato FHC. "Botam a mim no ar e ninguém pode dizer nada. Agora, o PT está começando, mas não pode."
Ora, ora, ora. Estamos diante da confissão (tornada pública) de um ministro de Estado segundo a qual a maior rede de televisão do país dá apoio por tabela, via Plano Real, a um dos candidatos à Presidência da República –e a mídia fecha boca, olhos e ouvidos, provavelmente inspirada pelo fato de que boa parte dela tem desmedida simpatia pelo mesmo candidato. A própria Rede Globo não veiculou esse trecho da conversa entre Ricupero e Monforte, reafirmando a prática de transformar em notícia apenas o que interessa a ela. Num episódio que revela muito da promiscuidade entre o poder e a imprensa, só a primeira parte levou a pior –o que mostra que poder, de verdade, quem tem é a imprensa. Especialmente o poder de se calar quando sua ética, e a ética de seus profissionais, é que estão em discussão.

A revista "Veja" que circulou semana passada publicou reportagem revelando (se é que alguém ainda não sabia) que existem emissoras de rádio e jornais do interior do país que vendem espaço para candidatos em campanha. Mas não só eles: a reportagem de "Veja" flagrou a mesma prática num programa da Rádio Globo e nas páginas do "Diário Popular", ambos com uma respeitável massa de público (o "Diário Popular" teria, segundo a revista, uma circulação de 150 mil exemplares).
Na quarta-feira, Folha e "Folha da Tarde" publicaram a mesma notícia sobre o "Diário Popular", acompanhada de explicações de seu diretor-superintendente. "Não temos espaço para todos os candidatos. Decidimos publicar informações daqueles que se dispuserem a pagar. Tenho quase absoluta certeza de que o leitor não toma aquelas informações como material jornalístico", disse Ricardo Saboya.
No "DP", uma nota de 25 linhas acompanhada de foto sai por R$ 1.000. O material não é acompanhado de anotação que o identifique como propaganda eleitoral, como manda a lei. Ao contrário do que diz o diretor-superintendente do "DP", tenho quase absoluta certeza de que o leitor não percebe que aquele não é material jornalístico. Trata-se de um abuso que fere a ética da imprensa (a que ela deveria ter, pelo menos), e contra o qual a Justiça Eleitoral não se manifestou até o momento.

Pelo menos seis leitores da Folha se incomodaram com uma reportagem publicada no jornal de domingo passado, na página Especial-3 do caderno Supereleição, com o título: "Lixo do comitê de FHC revela doadores". O que incomodou os leitores incomodou a mim também: a reportagem conta com detalhes que funcionários do comitê do candidato, em Brasília, acondicionam o lixo produzido durante a semana em sacos plásticos. Num dia determinado, os papéis (especialmente eles) são queimados num aterro, em local proibido.
A questão, entretanto, não é ambiental: a reportagem da Folha recuperou parte do lixo que não foi consumido pelo fogo e revelou aos leitores uma lista de supostos doadores de dinheiro para a campanha tucana. Mas a própria reportagem dizia, em seu terceiro parágrafo: "A legislação eleitoral permite que os candidatos mantenham em sigilo os nomes dos financiadores de suas campanhas. Apenas nos casos em que há suspeita de irregularidade o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) pode requisitar as prestações de contas".
Eis aí o problema: a Folha revirou o lixo de FHC para revelar algo que nem o TSE pode fazer sem solicitar ao candidato. É invasão de privacidade, repetiram os leitores. Que, irritados com o jornal, chegaram a chamar os repórteres de "ratos" (dois deles). Se a semana não tivesse sido dominada pelo noticiário parabólico e pela sucessão no Ministério da Fazenda, o abuso da Folha teria dado o que falar.

Por falar nisso, sumiu dos jornais (da Folha, em especial, que foi quem mais dedicou espaço ao assunto) a "denúncia" de que a campanha tucana usaria os serviços de um assessor do presidente americano, James Carville. Esta Folha\> chegou a noticiar com estardalhaço que a assessoria, desde que não formalizada através de pagamentos, seria ilegal. A menos que Carville estivesse recebendo bônus eleitorais de FHC, algo difícil de imaginar. Enfim, antes mesmo das devidas explicações aos leitores, o assunto sumiu dos jornais.
É só mais um daqueles que desaparecem como que por encanto.

A jornalista Sônia Mossri, repórter da sucursal de Brasília, teve o cuidado de consultar a fita gravada durante a palestra do sociólogo Hélio Jaguaribe para uma platéia de militares –aquela que gerou farto noticiário na Folha, pelas declarações de Jaguaribe de que seria preciso "acabar com o índio", e que comentei na coluna de domingo passado.
Sônia Mossri, responsável pela reportagem que deu o pontapé inicial na polêmica, informa que a frase integral de Hélio Jaguaribe foi a que segue: "É preciso desmistificar formas de congelamento da antropologia. Não existe a menor possibilidade de permanência das comunidades primitivas. É preciso acabar com o índio. Não vai haver índio no ano 2.000".
Reli a reportagem assinada por Sônia Mossri, e o problema está (a repórter reconhece) em que essa frase de Jaguaribe não aparece íntegra. O texto diz que Jaguaribe disse "que é preciso acabar com o índio' até o ano 2.000 e promover sua integração mediante escolarização". O título que o jornal acrescentou na edição, e a chamada na Primeira Página, ajudaram a colocar lenha na fogueira: "Jaguaribe defende o fim do índio até o ano 2.000", escreveu o jornal. Não foi, e a fita consultada agora por Sônia Mossri revela isso, exatamente o que o sociólogo afirmou em sua palestra. O jornal, mantenho o que escrevi na semana passada, fez jornalismo apressado sobre as idéias de Hélio Jaguaribe.

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