São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Programa FHC: o resgate do possível

GILBERTO DUPAS

A proposta de governo divulgada nessa quinta-feira por FHC, pela contingência de vir à luz em plena fogueira de final da campanha, surpreende bastante. O diagnóstico da crise brasileira é excelente, algumas formulações demonstram ousadia e os velhos mitos que povoam o inconsciente coletivo da nação são atacados com franqueza.
O Brasil é apresentado como "um país em mudança dentro de um mundo em mudança" que tem um desafio histórico a enfrentar: deixar-se levar pela enxurrada ou definir o que quer ser como sociedade, organizar-se e "construir o futuro com as próprias mãos".
Até aí, uma retórica tocante. Mas o grande salto está em que, ao definir o que o país quer ser, o documento primeiro analisa com profundidade o que ele pode ser. Isso faz toda a diferença.
Durante dois séculos os regimes ocidentais discutiram o que o governo deveria fazer. Só muito recentemente, ao superar a velha utopia do Estado como ente superior que promete a justiça social, os governos começaram a sair da demagogia voluntarista e a se perguntar, encarando de frente suas limitações de meios e circunstâncias históricas, o que podem fazer.
Peter Drucker lembra, em seu "The New Realities", que o último grande político ocidental que acreditou na utopia da salvação pela sociedade foi Willy Brandt. Seu sucessor, o líder dos socialistas alemães Helmut Schmidt, já foi um estóico, não mais um crente. Sua ideologia tinha dois princípios: a decência e a eficiência.
É cavalgando esses princípios que a proposta de FHC adquire grande consistência. Começa admitindo o desafio histórico de "redefinir um projeto de desenvolvimento que tenha uma dimensão internacional", vale dizer, que aceite a inevitabilidade de uma economia mundial centrada em decisões globais sobre uso da tecnologia, escalas de produção e padrão de qualidade.
Encara com realismo que, hoje, as decisões mundiais sobre o fluxo de capitais e investimento produtivo subordinam-se menos a políticas de governo e mais às decisões das grandes empresas globais.
Em vez de ficar propondo fantasias de como o Brasil deve fazer para mudar a ordem mundial capitalista, admite a dura realidade de tentar encontrar os espaços nos quais o país pode lutar para atrair o máximo de investimentos internacionais compatíveis com um programa de prioridades que vise retomar o desenvolvimento auto-sustentado.
Preocupa-se, também, com o desafio da competitividade da empresa nacional e a incentivá-la à competição internacional, o que obriga contínua redução de preço e aumento de qualidade. Tudo isso sem ingenuidades.
Sabe que esse jogo é perverso para os países mais pobres, que os protecionismos e subsídios disfarçados são estratagemas com os quais precisamos aprender a lidar, mas entende que, infelizmente, não há outro jogo a jogar.
Que ninguém venha nos dizer que os caminhos do Chile, da Argentina e do México são perfeitos e que significaram a redenção da pobreza. Bobagem! São rotas penosas, cheias de armadilhas.
Mas o fato é que esses países voltaram a crescer e agora têm mais espaço, se forem competentes, cada um dentro de suas circunstâncias, para lidar com o flagelo maior dos excluídos e miseráveis.
O objetivo enunciado pela proposta de governo de FHC é, pois, a retomada do desenvolvimento auto-sustentado. Para atingí-lo, a primeira premissa é a manutenção da estabilidade monetária, conseguida temporariamente pelo Plano Real.
Aliás, o sofrido povo brasileiro tem dado enorme prova de maturidade ao sinalizar que considera o fim da inflação um objetivo tão importante quanto o aumento de renda real.
As condições indispensáveis para que a estabilidade monetária tenha sucesso são o rígido controle do déficit público e da política monetária, a reforma do Estado e a privatização acelerada das estruturas públicas pouco eficientes.
Aliás, a privatização da infra-estrutura –tomado o cuidado de garantir a competição e não substituir simplesmente o monopólio público pelo privado– é fundamental para melhorar a competitividade sistêmica e constitui-se na única fonte não-inflacionária de recursos para dar suporte aos programas de emergência e à reforma do Estado.
No capítulo reforma do Estado a proposta FHC diagnostica com competência, mas avança com certa cautela. O mesmo acontece, aliás, na área da Previdência e em certos pontos da privatização. É compreensível. Em todas elas há limitações constitucionais graves que precisam ser superadas e questões sociais relevantes a enfrentar.
Outro ponto muito correto do programa é na caracterização do novo papel do Estado. A definição de um novo projeto de desenvolvimento dentro da realidade de forças da economia moderna –em estrita sintonia com a sociedade e os agentes econômicos– e a execução eficaz de seu papel indutor e normativo, respeitados os limites do mercado, parece um enunciado perfeito para a difícil conceituação de Estado moderno em um país em desenvolvimento de porte continental.
Cabe perfeitamente aí uma política industrial simultaneamente ousada e pragmática, amparada por mecanismos públicos que propiciem a criação de um padrão de financiamento de longo prazo adequado ao estímulo dos investimentos e do comércio exterior.
Nesse aspecto o programa é ousado e inovador quando compromete parte das altas reservas cambiais atuais com programas de infra-estrutura e esquemas de "hedge" ou "funding" que viabilizem esse novo padrão de financiamento do investimento produtivo a ser operado pelo BNDES.
A retomada do crescimento econômico exigirá muito esforço, determinação e lucidez. Nessa grande tarefa nacional não há lugar para a demagogia.
Os empregos só voltarão a crescer quando as empresas, estimuladas por um governo competente e uma moeda estável, tornarem a investir pesadamente, com tecnologia moderna e competitiva. Isso as fará produzir mais, a preços mais baixos. E os trabalhadores ganharão melhor porque serão mais eficientes e qualificados.
O Estado reformado, aliviado de seus lastros inúteis, deverá se dedicar com enorme empenho e efetividade à educação, saúde e habitação, verdadeiros flagelos da sociedade brasileira atual.
E o governo precisará ter a capacidade executiva de desencadear um amplo leque de programas sociais de emergência que atenuem o desemprego estrutural e o estoque acumulado de miséria durante os ajustes da transição.
O critério básico desses programas é a eficácia e seus recursos devem vir principalmente de fontes não-inflacionárias, como a privatização. O programa de FHC enuncia com clareza e realismo essas questões quando trata do combate à fome, pobreza e desemprego.
Enfim, a leitura da proposta de governo de FHC nos deixa serenamente otimistas. É preciso muita coragem para propor só o possível, especialmente em meio a uma delicada campanha eleitoral. Isso já é uma grande razão para acreditarmos em dias melhores.

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