São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Arquivos e fogos-fátuos

ROBERTO CALASSO

A história não tem nenhuma razão essencial para se distinguir da literatura. 'Carmen solutum' –denominava-a Quintiliano. Sem coação métrica, sem uma pré-ordenada prisão formal, a pesquisa histórica é a gradativa construção de uma memória artificial, a escolha sucessiva dos lacres de uma série sem fim de caixas de papelão nos arquivos. Cada uma, como um locus da mnemotécnica, encerra uma essência psíquica que a história liberta. A história atinge a si mesma quando decide fazer falar somente as fontes –e compreende que as fontes são qualquer coisa. É a griechische Kulturgeschichte (história da cultura grega) de Burckhardt a isolar na história seu caráter necromântico. Na voracidade em direção às mais irrelevantes minúcias, na capacidade de absorver estantes de papel prestes a se esmigalharem, interrogatórios que não talvez nunca tenham sido lidos por ninguém, nem mesmo pelo escrivão que os rasurava, a historiografia dos últimos decênios seguiu esta estrada, ainda que geralmente enganando-se sobre suas próprias razões: pelotões de pesquisadores pensavam que se aproximavam mais e mais do correto ao elaborarem montanhas de papéis; ou, mais ainda, acreditavam que, apresentando números e tabelas, assemelhavam-se à ciência. Mas, ao contrário, quanto mais cingiam os dados brutos, mais deixavam emergir a natureza de enigma mudo de cada pegada histórica. Atrás daqueles nomes, daqueles atos de escrivão, daqueles documentos judiciários, abria-se a imensa afasia da vida que se fecha em si mesma, sem contato com um antes e um depois. A história oferece seus indícios para garantir o próprio desaparecimento como pessoa. A verdade histórica, então, é aquela que atravessa o loquaz deserto dos arquivos para atingir, com ajuda da sorte, da poeira sacudida de um fascículo determinado, aqueles raros pontos nos quais os nomes ensurdecedores começam a ressonar entre si no fundo do silêncio, adquirindo um perfil singular, como um habitante de nosso bairro que certa vez cruzamos na rua e que deixa aberta uma fresta da sua desastrosa intimidade.
Tradução de MANUEL DA COSTA PINTO

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