São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Tempo é o oriente de Calasso

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

Numa passagem de "La Rovina di Kasch" (A Ruína de Kasch), o escritor Roberto Calasso diz que "toda civilização necessita nutrir, dentro de si, seu próprio Oriente".
Misto de romance, ensaio e digressão pelos labirintos da história, o livro de Calasso (leia texto abaixo) sugere uma chave interpretativa da ficção histórica contemporânea: num mundo que aboliu as fronteiras do espaço através da ubiquidade da informação, o tempo é a única dimensão inexplorada, o único Oriente que provoca a imaginação.
Afinal, é esta imaginação além das fronteiras temporais que une, na Itália, escritores tão diferentes quanto Leonardo Sciascia ("A Bruxa e o Capitão"), Umberto Eco ("O Nome da Rosa"), Italo Calvino ("O Barão nas Árvores") e o próprio Calasso.
Em "La Rovina di Kasch", ele faz suas personagens pavonearem pelos salões do Antigo Regime e pelos gabinetes da Rússia stalinista, contrapondo o tempo histórico, hegeliano, ao universo de repetições cíclicas do reino imaginário que dá nome ao livro.
Sua personagem central é Talleyrand, o camaleônico político francês, que guia o leitor por eras históricas implausíveis a partir da derrocado da monarquia Bourbon.
Segundo Italo Calvino, "Calasso vê esse episódio histórico não apenas como o fim do Antigo Regime, mas como o fim de um mundo cíclico, ritual, um mundo de sacrifício, que foi substituído pelo mundo da Razão de Estado".
Entretanto, Calasso não deixa intacta nenhuma das extremidades desse arco temporal. Se ele descobre na história "burguesa" as repetições da mitologia, a ordem cosmogônica de Kasch aparece através de um distanciamento irônico característico da literatura moderna.
Essa mesma ironia se percebe, por exemplo, em "As Núpcias de Cadmo e Harmonia" (Cia. das Letras), em que a voz ensaística de Calasso se faz ouvir por trás do cortejo de personagens da mitologia grega.
Tal fusão de gêneros na ficção denota, enfim, uma percepção segundo a qual os objetos só existem na linguagem, que se transforma assim no Oriente da criação –seja ela a do romance histórico ou não.

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