São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Stendhal faz jornalismo do séc. 19 em sua ficção

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A história aparece sem cessar nos romances de Stendhal. Por vezes, é um passado que ele reconstitui, em especial nos costumes e modos de sentir: Stendhal terá sido, muito antes da escola dos "Annales", um historiador dos afetos. Outras vezes, sobretudo nos grandes romances, vem sob forma daquilo que hoje conhecemos por história imediata, mas que talvez o homem do século 19 chamasse de jornalismo –reservando o termo "história" ao mais distante, ao que no remoto atingia um tom de maior dignidade, conferida, então, pela chave do solene, do poder.
Nos dois casos, é evidente que Stendhal rejeita a "história-batalha", que em nosso século os criadores dos "Annales", Lucien Febvre e Marc Bloch, também contestaram: aquela que reduz a história à memória dos reis e guerras. Aliás, basta ler, no magnífico afresco stendhaliano da Itália que é "A Cartuxa de Parma" (1839), os capítulos que mostram o herói Fabrício em Waterloo. Querendo bater-se do lado de Napoleão, o moço italiano corre à busca da batalha, que dele, porém, o tempo todo se esquiva. A tal ponto que, no fim, paira a dúvida: ele esteve mesmo na batalha? ou só viu uma sucessão de episódios, fragmentos que não chegam a constituir uma unidade?
Assim, tornando-se impossível o heroísmo, teremos um Fabrício quase pícaro, vivendo na Itália uma série de aventuras em que ele, o autor e o leitor se comprazem, as quais terminam delineando um trajeto, uma história, mas com muita fragilidade e fortuidade.
Essa recusa da história solene em favor de um senso histórico novo se lê bem nas "Crônicas Italianas" episódios de intensa paixão datados geralmente do século 16 ou 17 e escorados em textos de época. Empolgado pela idéia de energia, que eclode sobretudo no amor-paixão e na recusa do mundo burguês dos interesses mesquinhos, Stendhal acompanha o vigor das paixões na Itália. É um país no qual se mata e se morre de amor, e onde num dia de calor intenso uma princesa romana que saboreia um sorvete lamenta que só falte, para o prazer se tornar completo, ser ele um pecado.
Na verdade, o senso histórico de Stendhal parece estar ligado a um senso mais amplo, que é o da diferença de costumes. O mesmo empenho que ele mostra em retraçar a energia em suas formas italianas se vê em sua reconstituição dos sentimentos na Inglaterra (embotados pela forte repressão social), na rústica Alemanha (onde tudo é mais simples do que na sofisticada e artificiosa França) e em seu próprio país –no qual contrasta Paris com a província, mais preconceituosa, é certo, porém mais espontânea e cálida.
Assim, o eixo decisivo não é o do tempo, mas o da diferença de costumes, que tanto pode ser assinalada por rupturas históricas –o reinado de Luís 14, a Revolução Francesa ou a epopéia napoleônica– quanto por distinções geográficas. Os afetos se diferenciam tanto no espaço como no tempo. Essas duas coordenadas são igualmente válidas. Mais um ponto em que Stendhal anuncia a nova história, da qual Georges Duby diz (em seu "Guilherme Marechal") o quanto deve à antropologia, à investigação dos costumes.
Na história e na geografia das paixões, o que realmente temos são articulações distintas de dois princípios opostos. De um lado, simplificando, a razão: ela varre os preconceitos, liga-se à liberdade política e de pensamento, –mas Stendhal constata que com seu avanço no século 19 se acentuam os interesses, as distinções de classe, uma vida menos enérgica e mais planejada. Por outro lado, os afetos: um registro vital, menos liberal, presa fácil dos preconceitos tradicionais, mas com tudo isso mais livre para romper as amarras sociais que a modernidade multiplica. A riqueza do pensamento de Stendhal está em sua consciência da complexidade das relações entre essas duas pulsões opostas que tanto o atraem, até no movimento pendular que o faz oscilar entre a França e a Itália, que o faz, sempre que pode, viajar.
O caso mais flagrante de intromissão da história na narrativa é, porém, o do "Vermelho e o Negro". Este romance estava na tipografia quando eclodiu a revolução de 1830, com o povo nas ruas depondo Carlos 10º, o último rei francês a tentar se absolutista. Rapidamente, Stendhal escreve quase cem páginas que acrescenta ao romance.
Nestas, não fala da revolução, mas de uma organização secreta, composta das forças mais reacionárias da sociedade francesa, governando o país por trás do aparelho institucional. Sem nada de panfletário, essa passagem é porém um ataque impiedoso aos jesuítas, à aristocracia intransigente, ao legitimismo Bourbon.
A história aparece também nas obras que se seguem. Em "Lucien Leuwen", que ficou incompleto, a realeza de Luís Felipe –o decepcionante monarca que sucedeu à revolta de 1830– tem denunciada sua corrupção, as fraudes eleitorais, a repressão aos operários. Em "Lamiel", outro romance inacabado, surge um ladrão quase heróico, em óbvia alusão a Lacenaire, o grande criminoso galante da época e por quem a heroína se apaixona.
O que é esta presença do presente no romance? Uma das chaves Stendhal dá no próprio "Vermelho e o Negro", dizendo que teme chocar o leitor com as fantasias românticas de Matilde de la Mole. Ora, "o romance é um espelho que se leva a passear por uma estrada", explica. Por isso, capta o azul radiante do céu mas também a lama. E de quem é a culpa da sujeira: do romancista que o registra ou do inspetor rodoviário que deixar formar-se o lamaçal?
Mas esse presente –o barro, que afasta o romancista do sublime do céu– é político, e em outras passagens Stendhal lastima que em nosso dias não se possa fazer literatura sem tocar nas questões do poder. A polícia num romance, afirma, é como um tiro num concerto. E no entanto pode ser que Stendhal gostasse de alguma dissonância. Ou, pelo menos, que esse homem a um tempo refinado e democrático se sentisse num mundo dissonante, em que os valores e desejos entram em conflito, e que exprimisse, naquilo que é político em sua literatura, a recusa a mascarar ou simplificar esse conflito.

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