São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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A fraude passada a limpo

JANIO DE FREITAS
DO CONSELHO EDITORIAL

Os tribunais superiores brasileiros têm se realçado mais por decisões que contêm uma concepção ininteligível de justiça, ou do sentido das leis, do que por decisões que façam confiar na independência da alta magistratura em relação ao poder econômico e ao poder político. No dia 5 de agosto testemunhamos mais uma dessas decisões polêmicas: por 16 votos a 3, o Superior Tribunal de Justiça isentou Orestes Quércia de qualquer responsabilidade no caso das importações irregulares durante seu governo.
Quércia assinou com seu padrinho de casamento e então cônsul de Israel, Tzvi Chazan, um protocolo de colaboração científica e tecnológica que produziu uma só colaboração: serviu para revestir de aparências honestas uma negociata tríplice –as importações, em compras sem concorrência, de equipamentos para a USP, a Unesp (Universidade Estadual Paulista) e a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas); para o serviço estadual de criminalística e para a PM paulista.
Mas a venda ao governo paulista não foi feita pelos exportadores. Para isso foi criada uma empresa fantasma em um paraíso fiscal, tendo como diretor um advogado que depois se descobriu não passar de um rapaz de 18 anos. Era a maneira de fazer com que os preços dos equipamentos pudessem custar ao Estado de São Paulo entre 607% e 2.802% acima do seu preço verdadeiro. Para atender a esse sobrepreço assaltante, Quércia liberou verbas extraordinárias de pelo menos US$ 100 milhões.
A operação e sua posterior cobertura envolveram fraude cambial, fraude documental, tentativa de fraude pericial, a chamada fraude ideológica, fraude da ação de polícia, fraude processual. E Quércia foi excluído do processo pelo STJ sob a alegação de que não tinha envolvimento direto no caso.
"Fraude", do jornalista Frederico Vasconcelos, é a narrativa da sucessão quase infindável dessas fraudulências e de como cada uma delas foi descoberta. O leitor habitual da Folha está familiarizado com o tema. Há grande diferença, porém, entre a leitura do pinga-pinga diário de um assunto ao longo de três anos, com seus tantos ângulos e a dificuldade de rememorações amplas e constantes, e a leitura direta do mesmo assunto posto em livro.
A trama de associações e conivências, difícil de apreender no noticiário fragmentado, emerge por inteiro, impressionante, no desenrolar do livro. Governador, secretários, empresários-vigaristas, polícia federal, PM estadual, promotoria, magistratura federal e estadual, reitores serviçais, funcionários médios, jornalistas, o silênco da quase totalidade dos meios de comunicação –estas frondosas ramificações para criação e proteção da negociata expõem, talvez mais do que em qualquer outro caso, como e por quê a imoralidade administrativa domina o Brasil.
Em "Fraude" há outro aspecto exclusivo do livro. É a narrativa, passo a passo, dos procedimentos do repórter para as descobertas progressivas de toda a trama. Na imprensa brasileira, raríssimas vezes um assunto assim problemático foi tratado por um repórter e por um jornal com tão absoluta consciência jornalística, em tudo o que isto implica de ética, destemor, persistência e técnica de reportagem.
Um trabalho exemplar que resultou, também, em justa homenagem aos que foram seus sustentáculos, pela coragem e pelo desprendimento pessoal em função da coisa pública. Entre outros e principalmente, Severo Gomes, de tão bela memória, o jornalista Ruy Lopes, o procurador Carlos Alberto Americano, o professor Armando Laganá, o promotor Mário Bonsaglia e o perito Paulo Rubens Holanda Cavalcanti.
Não se pode dizer, porém, que "Fraude" seja uma leitura fácil. O emaranhado dos fatos já dificultaria a narrativa. Beneficiou-a ainda menos a adoção, pelo autor, das regras recentemente introduzidas no noticiário da Folha, que levam à substituição da fluidez da exposição por um texto multipartido e um tanto telegráfico. O conteúdo compensa a forma, no entanto. É um livro didático sobre os métodos da corrupção administrativa no Brasil, aos quais, como o leitor verá, não faltam sequer os grampeamentos telefônicos, as perseguições funcionais e as ameaças de morte.

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