São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Viagem ao redor de um quarto de hospital

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um livro de memórias sobre um período de coma clínico –isto é "Viagens Através do Sonho e da Imaginação", de Artur Lundkvist, um dos mais populares escritores suecos.
Romancista, poeta surrealista, ensaísta de vertente socialista radical e integrante do comitê que confere o prêmio Nobel, Lundkvist nasceu em 1906 e já escreveu 80 livros.
Em 1981, aos 75 anos, teve um grave infarto do miocárdio, ficando por dois meses inconsciente numa unidade de terapia intensiva. Ao despertar milagrosamente, recordava com clareza apenas dos sonhos que teve durante aquele período, sonhos que chamou de "as mais longas viagens" de sua vida.
São essas revelações oníricas que Lundkvist descreve neste livro que serve mais como curiosidade científica do que literária.
Nos sonhos, o escritor sueco sobretudo viaja, para planetas desconhecidos e países onde nunca fora; ele conhece pessoas mortas há muito tempo, gente nova, diferente, extraterrestres de cheiro estranho, transforma-se em árvore, vê seus ancestrais da Terra chamarem-no, e assim por diante, numa série de imagens e metamorfoses de delírio.
Trata-se de um relato de contemplação da morte, ou do momento de passagem deste para um outro mundo, dos mortos ou semimortos. "Sonhos estranhos, como os aqui descritos (...), são frequentemente narrados por pacientes que também se submeteram a uma monitorização cardiorrespiratória, como no caso de Artur Lundkvist", diz o médico que prefacia o livro.
"Não sabemos por que o cérebro começa a criar imagens e impressões visuais e sonoras (...)", continua ele, "após o organismo ter sofrido falta de oxigenação ou alteração de ventilação. (...) Após um longo período de desoxigenação, o paciente geralmente se encontra num estado semicomatoso, em que as percepções da realidade e as funções cerebrais se encontram misturadas."
Lundkvist conclui sua experiência afirmando que o que acontece quando morremos é muito simples: "o mundo desaparece", só isso; enquanto sua sensação pessoal era a de prosseguir viajando pelo mundo etéreo do devaneio.
Quer tenha mais de caráter místico ou religioso, quer seja puro recurso psicológico –pois Freud diz que as forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e que toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória–, a experiência onírica de Artur Lundkvist toca no centro da sempre curiosa questão da imortalidade (ou mortalidade).
O interessante no livro, –que não oferece mesmo maiores viagens de ordem formal ou estética– é a abordagem, através do coma, deste momento que Schopenhauer chamava de momento de transição.
"Seja lá o que se venha a ser quando se morre –mesmo que seja o nada–, ainda assim será tão natural e adequado a cada um de nós quanto nossa existência orgânica individual o é hoje: portanto, o que mais se deve temer é o momento de transição", dizia o filósofo.

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