São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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A amazônia entre a ciência e a fábula

Fato e ficção convergem nas crônicas da região amazonense

MILTON HATOUM
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar as civilizações distantes", escreveu Euclides da Cunha num dos ensaios de "À Margem da História". Em 1905, durante a viagem de reconhecimento do Alto Purus, Euclides não reconheceu o que havia lido nas obras dos "não sei sei quantos viajantes que desde Humboldt até hoje contemplaram a Hylae prodigiosa, com um espanto quase religioso". Nos ensaios amazônicos o escritor comenta, entre muitas coisas, o isolamento e a crueldade a que estão submetidos os seringueiros; mas às vezes contempla, com um assombro quase religioso, "esta última página do Gênesis". E aí reside a ambiguidade de um olhar que, tal um pêndulo, oscila entre a realidade que o escritor vê e as imagens idealizadas que ele leu nos textos dos viajantes e naturalistas.
A Amazônia, como outras regiões do Novo Mundo, foi idealizada, fabulada. No século 16, o Paraíso Terrestre foi substituído pelo maravilhoso e o bestiário herdados da mentalidade medieval. O Novo Mundo será, então, invocado por adjetivos que derivam do maravilhoso: as coisas contempladas são admiráveis (belas ou execráveis). Mas a circulação de tantos adjetivos é acompanhada pela circulação de uma mercadoria, pois o que se busca no Novo Mundo, além do Éden Terrestre, é o ouro. E aí a fábula convive com uma façanha: nomear o Novo Mundo, mesmo com um olhar míope, já é conquistá-lo, possuí-lo a ferro e fogo.
"A Invenção da Amazônia", de Neide Gondim, é um ensaio vigoroso sobre essas visões que idealizaram ou "inventaram" a região. O ensaio move-se nos campos da história e da literatura, analisando várias modalidades de discurso sobre a Amazônia: crônicas de viagem, relatos de naturalistas e etnógrafos, obras ficcionais de autores brasileiros e estrangeiros. Nesse longo percurso crítico, a autora mostra como a noção de "diferença" vai nortear as grandes classificações das ciências nos séculos 17 e 18, e determinar, por muito tempo, o discurso da superioridade sobre o Outro.
Nas crônicas dos descobridores, nas classificações de Buffon, nos romances "La Jangada" (Jules Verne) e "A Selva" (Ferreira de Castro) e em tantas outras narrativas é a diferença que vai instaurar graus de complexidade e escalas hierárquicas entre a Europa e Novo Mundo. O europeu (e não poucos brasileiros), para diferenciar-se do nativo, recorre à comparação, e isso "a priori" é uma eleição de valores, pois nesse confronto os nativos sempre ocupam o patamar mais baixo da escala comparativa.
Nesse sentido, o ensaio desmistifica (e até certo ponto exorciza) a visão exótica, os pré-conceitos que temos do desconhecido. Visões que passam de um texto para o outro, e essa superposição de linguagens origina uma espécie de palimpsesto amazônico. Por isso, as crônicas dos viajantes avizinham-se de uma ficção, e esta, por sua vez, alimenta-se do imaginário dos relatos de viagem, como se ambos convergissem para uma narrativa ficcional da História: a invenção da Amazônia.
Esse estudo tão abrangente, e por isso mesmo aberto para outros textos e novas leituras sobre a região, nos permite rever uma região através das visões distorcidas que perduram, pois a Amazônia, enquanto "periferia exótica" de um Brasil desagregado, em crise crônica, ainda é um desafio e um lugar da utopia.

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