São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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O presente de nossas ilusões

É necessário reiventar modelos para o sexo e o amor

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sei que as eleições se aproximam; que a polícia do tráfico já impõe regularmente toque de recolher em favelas e exige documentos de passantes; que o real ainda é meio irreal; que ex-ministros dizem em público o que pensam de nós em privado e que a criança da esquina morre de fome ou assalta outra criança para roubar-lhe um par de tênis. Por que, então, voltar a sentimento, sexo e narcisismo? Não seria ócio de salão para os que têm pão, teto e circo garantidos? Penso que não. Penso que o modelo socioeconômico que desejamos depende da imagem de indivíduo que temos como ideal.
E o modelo ideal de indivíduo dominante, o tipo "gomalina com celular", é indissociável do consumo urbano de cocaína, do desdém pelos mais pobres e discriminados, da corrida pelo sexo, do aumento de vendas de tranquilizantes, antidepressivos e hipnóticos, e, por fim, do esforço, cada vez maior, feito por todos nós, para viver sem tanta raiva, intolerância e sentimento de solidão.
Donde a importância do que Calligaris vem insistentemente definindo como o problema narcísico de nossa individualidade. Quase todos querem uma sociedade mais justa e um mundo melhor. Mas como conciliar o bem comum com uma idéia de felicidade privada cuja cláusula de satisfação é a indiferença para com o outro, individual e coletivo?
Até agora éramos filhos dos ideais iluministas. O mundo deveria ser justo para todos e feliz para cada um. Ética pública e ética privada deveriam ser companheiras. A tolerância era o fiel da negociação. A fórmula, sabemos, revelou-se complicada. O amor romântico, emblema da felicidade individual, mostrou que é uma das formas mais antipolíticas de convívio humano. Quem ama, disse Hannah Arendt, abandona o mundo. Por outro lado, o bem-estar coletivo que despreza a felicidade individual pode ser absurdamente despótico. Vide as tentativas comunistas de gestão burocrática dos sentimentos, em nome do interesse do Estado e do "Povo".
Mas enquanto os arquitetos de mundos mais condescendentes discutiam, a máquina capitalista respondia ao mal-estar da cultura, criando o presente de nossas ilusões. No universo do lucro, o político tornou-se o mercado, o sujeito tornou-se o objeto, e a felicidade, o consumo. É o reino narcísico do objeto como espelho do sujeito. Portanto, uma vez mais, com sentimento, voltemos ao sexo, ao narcisismo e ao amor.
Um dos tópicos centrais da fantasia narcísica de felicidade é o da realização imediata do desejo. O mercado fabricou a solução imaginária. Fez da felicidade consumo de coisas que, supostamente, podemos ter quando e como quisermos. A cocaína; as quinquilharias eletrônicas; a promessa de um sexo excitável e controlável por meios técnicos etc, são, entre outros, os artefatos que se prestam à estas funções.
A receita na aparência funcionou. Com dinheiro, poder e sucesso temos tudo o que é preciso. Os passos até lá são variados. Uns preferem a competição, a inveja, o stress, o parasitismo especulativo e a superexploração dos mais frágeis; outros preferem o roubo, o assalto, o sequestro o tráfico de drogas, as negociatas e a corrupção. O cardápio é opulento. Fica ao gosto do freguês.
Ora, este "ethos de primeiro mundo" onde a maioria quer entrar, é o oposto da velha moral. Na última, diziam-nos que a felicidade estava no respeito que tínhamos do outro; no amor que tínhamos pelo outro; no compromisso com os outros etc. Mas este mundo perdeu-se, porque tornou-se um mundo para os }happy few. Além disso, definindo o outro como medida do eu, propôs aos indivíduos uma dura tarefa, a de introduzir o sofrimento na economia do desejo. O outro que amamos poder dizer não ao que pedimos.
Eis a antinomia da felicidade individual contida no amor romântico: se o outro não pode fazer-me sofrer com sua ausência ou sua recusa, não sei o que é amar, e se sei o que é amor estou exposto ao sofrimento do "não". A este impasse a felicidade do mercado respondeu dizendo: "ame os objetos, eles jamais dizem "não"! São dóceis e programados para realizar o que julgamos saber sobre a satisfação de nossos desejos.
Disse mais: "vão adiante!" Tornem-se um deles. Aprendam a descrever-se como produtos de engrenagens biológicas ou de "estruturas mentais invariantes" que todos podem conhecer e manipular. Vendam-se e comprem-se conforme a demanda e a oferta. A felicidade está pronta. Comecem a gozar! Mas esqueceram de um detalhe, não aboliram "amor" e "desejo" do vocabulário. Continuamos precisando do que desejamos, e uma nova antinomia, pior e mais desesperadora, vem se insinuando no lugar da anterior, a antinomia do "sim". Imaginemos um mundo narcisicamente perfeito, onde o desejo seja automaticamente realizado. O que seria este mundo? Stanislaw Lem já o inventou. O Grande Outro narcísico, na novela de Lem, é Solaris, um planeta que não pode deixar de realizar o desejo dos humanos. A história é simples. O tripulante da nave que se aproxima do planeta evoca a mulher amada que morreu. Ela revive. Mas logo ambos se dão conta de que no momento em que ele deixa de desejá-la ela volta a morrer. Começa o ritual da tortura: ele não pode parar de desejar sem que ela morra; ela não pode dizer "não" e suplica-lhe que a deixe morrer; ele não pode porque a ama e o planeta realiza seus desejos.
Raramente, na ficção, imaginou-se uma forma de sofrimento humano tão cruel. Presos à montagem imaginária narcísica, como diz Calligaris, planeta, sujeito e objeto do desejo vivem na mais profunda infelicidade, a infelicidade que quem só pode dizer "sim" e receber "sim". O outro narcísico, formado à imagem e semelhança do desejo do indivíduo, paralisa todos na dor. E, como no mito do Narciso, só a morte pode fazer cessar a agonia. Enquanto um viver nenhum outro pode dizer "não". Resultado: não podemos voltar ao antigo tempo da castração onde a bem-aventurança do "sim" eterno e pleno só existia no céu, não queremos sofrer e estamos criando o inferno na terra.
Resta trocar de crenças e problemas. Trocar sofrimentos maiores por outros mais amáveis. Como fazer? Uns pensam na desmoralização do fetiche dos objetos; outros, na reinvenção permanente de nossas formas de desejar. Acho que Calligaris, como o cinema de Neil Jordan e sobretudo de Mike Newell, vão nesta segunda direção. Em vez de dizerem, como na tradição: "coitado do sexo, escravizado pelo cristianismo ao amor, vamos libertá-lo!" dizem, "chega de saudade sexual!" Façamos do sexo algo leve e lúdico. Nem objeto, nem totem, nem tabu. Narcísico, se for o caso, como aliás, todo amor é, em certa medida. Mas surpreendente! Sem a previsibilidade dos objetos, sem a falácia da solução do mercado e com o ironismo rortyano que descongela modos de pensar.
Onde encontrarmos "deve ser", driblemos o imperativo e perguntemos: "por que não desta outra maneira, se nela ganhamos em amor?" Quem sabe, pela dispersão constante dos suportes amorosos; pela desidealização sexual do objeto de amor; pela reinvenção de outros modos de amar, venhamos a viver num mundo de "sim" e "não" sem tanta atrocidade e desalento. Órfão de Woodstock, de Marcuse e de Maio-68, dirá o cético. Talvez. Mas alguém tem uma idéia melhor? Se tem, por favor, fale alto! Faça como Jordan, Newell ou Calligaris. Aposte no "princípio esperança". Engrosse o coro dos que querem crer no que disse Walter Benjamin em algum lugar de seus escritos. "Os homens, como as flores, voltam-se para onde o sol nasce!" Hoje, parece, só temos olhos para onde o sol se põe.

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