São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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O exílio sonoro de Mahler

Ensaio analisa a obra dilacerada do compositor

MURILO MARCONDES DE MOURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gustav Mahler (1860-1911) sempre suscitou opiniões veementes e contraditórias. Como compositor, sofreu o repúdio mais ou menos generalizado, apenas igualado em intensidade pelos poucos que o adoravam sem reservas.
Basta pensar nos juízos tão contrastantes de dois dos maiores maestros do século 20: Toscanini, ao ler a partitura da "Quinta Sinfonia", afirmou nunca ter encontrado tanta vulgaridade junta, vaticinando que em pouco tempo seria inteiramente esquecida; já Bruno Walter elogiava a "Canção da Terra" como a "criação mais pessoal de Mahler, e talvez de toda a história da música".
Mesmo como regente, a unanimidade favorável era manchada pela fama de homem irascível, exigente com os músicos e intérpretes até o limite do sadismo.
O fato de ter sido reconhecido como regente e desconsiderado como compositor representou apenas um dos desequilíbrios da vida de Mahler, e talvez o mais ameno. As fundas tragédias familiares, a perda de amigos músicos pela loucura ou pelo suicídio, a necessidade de trabalhar entre hostilidades e intrigas, relegando as atividades de compositor para as férias de verão etc. Material apropriado para a configuração de uma vida heróica, em que o artista criador faz prevalecer sua vocação contra obstáculos de toda ordem.
O próprio Mahler ajudou, de modo involuntário, na constituição desse mito. Quando menino, afirmou que queria ser "mártir"; posteriormente, faria a famosa declaração: "Três vezes apátrida, natural da Boêmia entre os austríacos, austríaco entre os alemães, judeu em todo o mundo".
Não por acaso predominaram, num primeiro momento, os relatos memorialísticos: da amiga violinista Nathalie Bauer-Lechner (1923), de Bruno Walter (1936) e sobretudo da ex-mulher Alma Mahler (1949). Na mesma linha, tem interesse o livro de Theodor Reik –"A melodia obsessiva", 1953– em que a auto-análise do psicanalista funde-se com a caracterização de Mahler como "neurótico obsessivo". Ao lado destes escritos, a fidelidade de três grandes regentes manteve aceso o interesse pelo compositor: Walter, Mengelberg e Klemperer.
A partir de 1960, centenário do nascimento, a situação mudou muito. Um marco é o estudo minucioso de Adorno (1960), devedor das idéias de Schoenberg, Berg e Webern relativas a Mahler, a quem tinham em alto apreço.
Em 1973, Mahler encontraria seu biógrafo mais dedicado e provavelmente insuperável: Henry-Louis de La Grange, autor de obra monumental –cerca de 4.000 páginas em três volumes. Uma nova geração de maestros continuou a tocar sistematicamente suas composições, Haitink, Bernstein e Eliahu Inbal, entre outros. Outro vaticínio, agora do próprio compositor, foi amplamente confirmado: "Meu tempo virá!"
"Mahler", de Marc Vignal, publicado originalmente em 1966 na importante coleção francesa "Solfèges", situa-se neste segundo momento de avaliação e, entre os trabalhos concisos dedicados ao compositor, é dos mais elogiados.
A qualidade básica do livro é a junção crítica entre os dados biográficos tão chamativos e a acurada análise das sinfonias e das canções de Mahler. O leitor poderá acompanhar, ao lado de exemplos musicais comentados, passagens biográficas centrais: as relações com Bruckner e Brahms e depois com Schoenberg (a tradição e o novo), os encontros com Sibelius e Freud, as preferências musicais e literárias, os dados que cercaram a gênese das composições mais importantes etc.
Vignal insiste na dualidade insolúvel da música de Mahler, dividida entre os séculos 19 e 20, entre o sublime e o banal, entre o gênero mais intimista do "lied" e as sinfonias. Cada uma de suas obras representaria uma resposta diferente a essa tensão e daí o destaque dado pelo crítico a duas declarações do compositor: "O termo sinfonia significa para mim: com todos os meios técnicos à minha disposição, construir um mundo" e "a sinfonia deve ser como o mundo, ela deve abraçar tudo".
Esta disposição mahleriana para compor com material tão heterogêneo está certamente por detrás da enorme extensão de muitas de suas obras, tantas vezes ouvidas apenas em fragmentos. Dois deles mereceram a atenção especial do crítico, o último movimento da "Sexta Sinfonia" e o primeiro movimento da "Nona", analisados compasso por compasso.
Naturalmente, é livro para ser lido entremeado com a audição das obras e, para isso, há uma oportuna "orientação discográfica", atualizada por Vignal para a edição de 1982.

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