São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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A câmera indiscreta de Ricupero

PAUL SINGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já está até nos compêndios, sinal de que é praticado há tempos no que estes chamam de "mundo real". Trata-se do ciclo político, do resultado desnaturado do cruzamento entre democracia eleitoral e política econômica conjuntural. Desde que governos eleitos pelo sufrágio universal passaram a administrar a conjuntura econômica mediante a manipulação de instrumentos fiscais e monetários, notou-se que este manejo passou a ser condicionado fortemente pelo calendário eleitoral. Medidas impopulares são adotadas longe da época dos pleitos, enquanto na véspera dos mesmos a política econômica procura apresentar ao eleitorado a melhor conjuntura econômica possível.
No Brasil da superinflação não escapamos do ciclo político, embora a cultura política vigente reprove explicitamente o uso do poder governamental para influenciar o eleitorado. Ao contrário dos EUA ou do Reino Unido, por exemplo, em que os governantes disputam a reeleição sem deixar seus postos, no Brasil as leis exigem a desincompatibilização: qualquer candidato a eleição tem que renunciar o cargo no Executivo no mínimo um semestre antes do pleito, para impedir que o poder de Estado possa ser usado em interesse próprio.
Foi por isso que Fernando Henrique Cardoso deixou o Ministério da Fazenda ao se candidatar à Presidência da República. Como toda instituição humana, também esta é falha, pois não consegue impedir que os que ficaram no governo movam céus e terras para favorecer seu ex-participante "desincompatibilizado".
Era o que vinha acontecendo na atual campanha eleitoral. Quando um país sofre de inflação enorme e crônica, como é o caso do nosso, a maneira mais fácil de suscitar uma conjuntura econômica agradável à população é desindexar subitamente a economia, fazendo a inflação despencar por alguns meses, antes da necessidade de adotar medidas recessivas (na realidade obrigatórias apenas pelo receituário convencional).
O único problema é a cronometragem –a reforma monetária não pode ser prematura a ponto de a inflação dar sinais claros de retorno antes do pleito, nem tão tardia que não dê tempo ao eleitorado de se deixar seduzir pela súbita estabilidade dos preços. Pelo que estamos assistindo, a cronometragem do Plano Real ex-FHC foi próxima da perfeição. Após um início desastroso, com o real sinalizando preços elevadíssimos, seguiram-se dois meses de suave deflação, que parece ter encantado o público e suscitado no eleitorado a reação almejada.
O ciclo político teria alcançado sucesso completo, não fosse a câmera indiscreta que flagrou o desabafo do ministro Ricupero. Suas considerações auto-apreciativas constituem ilustração antológica da teoria do ciclo político, ao revelarem de corpo inteiro as intenções que norteiam a política econômica dita de "estabilização". Só que a eficácia do ciclo depende em grande medida de que ele não seja percebido pelo público. Este tem que estar convencido que a estabilização é permanente, que o Plano Real já começou dando certo e que seu autor deve ser eleito à Presidência para assegurar-lhe a continuidade.
Informado dos objetivos eleitorais do Plano e da manipulação intencional das informações relevantes sobre seus resultados, o eleitorado pode mudar suas convicções. Seja por revolta contra a tentativa de enganá-lo, seja por compreender que a escolha não é entre o autor da estabilização e seus críticos mas entre candidatos comprometidos com diferentes estratégias de estabilização, que não devem ser julgadas pela experiência de apenas dois meses de uso da nova moeda.
Se quisermos preservar nossa cultura política e o instituto da desincompatibilização, não basta a renúncia a cargos do governo dos que querem se candidatar. Teremos de coibir as práticas do ciclo político, que nossa sensibilidade identifica como embuste eleitoral. O que talvez venha a exigir a proibição de reformas monetárias no período pré-eleitoral.
Economicamente, o ciclo político apenas semeia ilusões, mas politicamente ele pode ser desastroso para a democracia. A desilusão pós-eleitoral induz a descrença na seriedade da competição política e leva ao abstencionismo e à alienação. Se soubermos tirar as consequências devidas das confissões de Ricupero, as futuras gerações poderão concluir que elas prestaram um serviço à consolidação da democracia no Brasil.

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