São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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FHC e Lula expressam dois países incompatíveis

EMIR SADER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os quinze minutos de confissões privadas dos vícios públicos por parte do ex-ministro Rubens Ricupero, interpretadas sob o pano-de-fundo do palanque de FHC, permitem uma compreensão do discurso e do mapa do poder hoje no Brasil. O discurso político se esmera em camuflar o poder. De repente, via antenas parabólicas, pela própria TV Globo, o país tem a confirmação do que vinha sendo denunciado pela oposição contra uma barragem monopólica dos meios de comunicação.
O palanque de FHC comporta os banqueiros, as empreiteiras, os latifundiários, os grandes empresários, os monopolizadores dos meios de comunicação. Comporta o governo Sarney e o governo Collor. Comporta os partidos que mais frequentaram a lista dos acusados na CPI da corrupção no orçamento. E, no entanto, FHC se apresenta como um candidato que reivindica a social-democracia, que nega ser a expressão brasileira do Consenso de Washington.
Como decifrar esses enigmas?
O contexto internacional –já que a onda neoliberal vem de fora– ajuda: afinal Mitterrand na França, Felipe González na Espanha, Carlos Menem na Argentina, Carlos Salinas no México, Carlos Andrés Perez na Venezuela, foram eleitos por partidos que se reivindicam a social-democracia, que participam da Internacional Socialista e colocaram em prática duríssimos planos de ajuste neoliberal. Não é estranho portanto que a versão nacional dessa corrente se converta igualmente ao credo neoliberal.
Para dar mais consistência a essa conversão, tome-se a gestão de FHC no Ministério da Fazenda. No ano de 1993 foram liberados mais de 50% dos recursos disponíveis para pagar juros aos bancos privados, enquanto a educação, a habitação e a agricultura receberam, juntas, menos de 10%. Ao lado disso, a política de juros altos como forma de pressionar o consumo para o combate à inflação –conforme a concepção malthusiana– se encarrega de multiplicar a divisa pública, favorecendo a diminuição constante dos recursos para as políticas sociais.
Essa política já demonstrou que as concepções que presidem a visão contemporânea de FHC são perfeitamente integradas ao ideário neoliberal. Até o seu primeiro outdoor de campanha, FHC espelhava isso, ao escolher a frase "Ordem no Estado, progresso na sociedade". Naquele momento seus homens de marketing –nacionais e estrangeiros– lhe fizeram ver como essa concepção –coerente com sua gestão no ministério– o levaria fatalmente à derrota. Que nas eleições era indispensável falar de políticas sociais. Dali surgiu a "mãozinha" produzida pelo marketing, de forma postiça em relação ao que FHC havia feito com as políticas sociais no governo.
O neoliberalismo é o ponto de encontro da aliança PSDB-PFL, o coração da candidatura de FHC. O PFL representa o partido que mais explicitamente reivindica os princípios dessa doutrina, para a qual o mercado decide o que é bom, o que é verdadeiro, o que é correto, o que é belo, o que é moral. Com sua gestão à frente do Ministério da Fazenda, FHC se credenciou para ser o candidato anti-Lula, com uma plataforma que acomoda os interesses dos dois partidos.
O neoliberalismo foi posto em prática no Brasil, de forma mais clara, desde o último ano do governo Sarney, com o chamado "feijão-com-arroz" de Mailson da Nóbrega, teve continuidade no governo Collor e, posteriormente, no de Itamar Franco. É a orientação que mais claramente corresponde ao tipo de sociedade apartada existente no Brasil contemporâneo. Uma sociedade em que a predominância, cada vez mais sem contrapesos, das relações mercantis exclui dos direitos básicos de cidadania a massa da população e faz do Brasil o campeão mundial das injustiças sociais. O Brasil de 20% de cidadãos, cercados, com terror, pelos 80% de despossuídos.
O Plano Real, colocado em prática às vésperas das eleições, levava já no seu bojo a concepção instrumentalista, eleitoreira e irresponsável que as confissões do ex-ministro Ricupero explicitavam. A estabilização da moeda é impossível em alianças estreitas com todos os banqueiros, com os dois partidos que representam o próprio fisiologismo ao longo dos anos no Brasil, com uma política que multiplica a dívida interna e renegociou em condições desvantajosas para o país a dívida externa.
Os dois candidatos mais cotados para ser eleitos representam dois palanques, dois programas e dois Brasis absolutamente diferentes e incompatíveis. A candidatura de Lula expressa a promoção da maioria social à maioria política. Será um governo que garantirá a estabilização da moeda, atacando as raízes mesmas da especulação financeira, promoverá uma reforma tributária progressiva, fará com os ricos passem a pagar impostos, combatendo radicalmente os mais de 50% de sonegação, além de se comprometer com as reformas que possibilitam a justiça social, mediante o compromisso de colocar todas as crianças na escola, de realizar a reforma agrária, de democratizar os meios de comunicação.
Além de que representam estilos diferentes: de um lado, a transparência, a ética como critério da política e da economia; de outro, o discurso da equipe econômica de FHC, expresso nas confissões de Ricupero –nomeado em concordância com FHC e convidado por este para ser ministro de seu eventual governo–, que não ocorrem por acaso. As duas caras do discurso do ex-ministro apenas revelam as contradições da candidatura de FHC. O discurso do poder espelha o mapa do poder. Sem sua derrota, será impossível realizar no Brasil os ideais de uma democracia política com alma social.

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