São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Um passo atrás na busca da racionalidade

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

O escândalo Ricupero afetou a campanha eleitoral de modo deplorável, ao alimentar um moralismo histérico. Desde a queda de Collor, o processo político brasileiro paulatinamente ganhou racionalidade: tanto da parte do eleitor, que passou a desconfiar de promessas messiânicas e a demandar políticas capazes de lhe trazer maior previsibilidade no cotidiano, quanto da parte do político profissional, agora obrigado a mostrar como vai cumprir suas promessas.
Foi Fernando Henrique que, compreendendo melhor esta mutação, logrou pôr de pé um plano político de estabilização monetária, a ser, pois, refeito conforme conseguir aglutinar novas forças capazes de aprovar reformas a serem aprofundadas. Esta compreensão e atuação mais finas levaram-no naturalmente à preferência nas intenções de voto, tornando viável sua eleição à Presidência da República.
O escândalo Ricupero veio embaçar o clima de racionalidade que já começava a vacilar com o desespero dos prováveis vencidos. O ministro, até então elo de confiança entre o governo e o povo, no sentido de assegurar a previsibilidade das próximas etapas do plano de estabilização, apareceu como manipulador cínico e sem escrúpulos, tendo perdido a cabeça ao atingir o cúmulo do poder –infinita foi sua soberba.
Uma falha moral, contudo, não basta para condenar o pecador. Comportando-se de maneira rara em nossa vida pública, Rubens Ricupero copia sua falta diante dos olhos surpresos da nação, restabelecendo sua moralidade individual. Depois desse episódio, quem não tiver pecado que lance a primeira pedra.
Se moral e política coincidissem, o restabelecimento da moralidade individual teria como consequência anular o erro político. Mas não foi o que aconteceu "et pour cause". Permaneceu o erro político de pretender usar seu cargo privadamente, como se ali estivesse para barganhar sua permanência no próximo governo. E neste ponto parece-me particularmente que o PT comete mais um engano, ao explorar o episódio de forma incorreta.
Tão deploráveis quanto a entrevista indiscreta de Ricupero foram as primeiras reações de Lula e de Mercadante, dizendo que agora o povo sabe de que lado está a verdade, sem precisar esperar por dois anos. Como já sublinhou Bresser Pereira numa nota desta Folha: a mentira está em todo lugar e a verdade política resolve-se numa luta contínua que requer, para ser lograda, a colaboração de todas as partes na correção vigilante dos enganos.
Esta é a essência da democracia. Somente nos regimes absolutos é possível pretender que a política decorra diretamente da moral sem solução de continuidade, pois somente neles o poder é absoluto, desvinculado de qualquer processo de atrito e de negociação.
Como, porém, deve ser corrigido o erro político de Ricupero e restaurada a moralidade pública? Antes de tudo, evitando que uma das partes integradas no jogo político se arvore em receptáculo da verdade e exclua as outras como representantes da mentira. Mas lamento ver Lula retomar seu discurso adequado a um comitê de salvação pública e lamento muito mais meus colegas da Universidade de Brasília resvalarem pelo terror, pretendendo cassar o professor Ricupero de seu convívio.
No entanto, no final das contas, todo esse engajamento do governo Itamar na candidatura de Fernando Henrique Cardoso não é uma imoralidade pública? Diante da brutalidade de tais fatos, não convém calar as firulas filosóficas? Só o discurso autoritário tem medo de sofística. Nada mais ingênuo do que imaginar que um governo, tendo candidato, não se comprometa com ele, vindo a comportar-se como magistrado da eleição. Isto é papel do Poder Judiciário.
Aqui cabe distinguir cuidadosamente o Executivo, como instituição política, do Judiciário e das outras instituições apolíticas da sociedade civil. Um grupo partidário, chegando legitimamente ao poder, deve implementar uma política, cuja direção particular se generaliza enquanto resulta de uma eleição democrática e continua a utilizar publicamente recursos governamentais. E dentre esses últimos figura a propaganda de tudo o que o grupo no poder tem feito no sentido de realizar seu programa, do ponto de vista particular que orienta sua ação.
Não existe uma ação de governo exclusivamente universal; sempre beneficia alguns em prejuízo relativo de outros e, neste nível, creio que vale o princípio de justiça enunciado por John Rawls: a ação se torna justa se as diferenças de benefício forem ao auxílio daqueles que estiverem em piores condições na escala social.
Se a inflação é um conflito distributivo que piora a situação dos brasileiros, sobretudo dos mais pobres, nada mais justo do que combatê-la. E, se o governo possui um candidato que se empenhou na elaboração de um plano de estabilização e promete dar continuidade a ele, também é justo, democrático e legítimo que este governo o associe à propaganda do plano, elemento essencial na sua implementação.
À oposição cabe negar a validade do plano –o que hoje quase todos deixaram de fazer–, vigiar sua realização e propor correções de rumo, a fim de que o povo as aprove. Mas não tem cabimento sustentar que o plano seja mentira eleitoral, simplesmente porque seu principal executor, num dado momento, além de se mostrar cínico, diz que mentiria na divulgação de alguns dados.
Mentira aliás de pernas curtas, como se outros institutos não os tivessem colhendo. A verdade do plano não está nesta intenção nem nesta falha, mas na correção de seu rumo.
Mas, se cabe reconhecer o caráter partidário de um governo e a legitimidade de usar recursos públicos no sentido de divulgar e tentar dar continuidade a seu programa numa direção particular –como aliás fez Luiza Erundina ao defender suas posições numa greve de transportes, o que lhe acarretou uma representação popular, felizmente rejeitada pelo tribunal–, não é por isso que se torna válido usar recursos públicos para ajudar a eleger candidatos de um partido.
A diferença é sutil, mas a democracia nasce dessas sutilezas. É válido tudo o que o governo fizer na propaganda de sua política, o que obviamente auxilia os políticos que o apóiam. Mas essa política pode ou não dar certo e o povo a julgará. Corrompem-se, contudo, os candidatos e o povo quando políticos recebem do governo dinheiro, empréstimos, instalações etc.
O que não tem cabimento é pedir que o governo se cale e não defenda as particularidades de sua política, porque não existe política sem particularidade.

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