São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Na segunda vez, como farsa

MARILENA CHAUI

É conhecida a passagem célebre: "a história se realiza na primeira vez como tragédia; na segunda, como farsa". Conhecedor de Marx, cujo estudo foi por ele introduzido na universidade, Fernando Henrique Cardoso trouxe de volta a frase marxista famosa ao dizer, sintomaticamente, que "estão querendo fazer uma farsa...não estamos em 1989". Infelizmente, estamos em 1989.
Certamente, para o currículo do candidato do governo e para seu amor-próprio, há de ser intolerável a mera suposição de que possa ser comparado a Fernando Collor. Infelizmente, escolheu uma via na qual a semelhança tornou-se evidente.
Ao buscar a aliança com Roberto Marinho, Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel e os demais "bandidos" mencionados por Rubens Ricupero, aceitou ser o instrumento da direita conservadora para, mais uma vez, impedir algumas mudanças de fundo neste país.
Se há alguma diferença entre 1989 e 1994, encontra-se no fato de que, desta vez, os "bandidos" de Ricupero puderam contar com uma das mais belas cabeças da intelectualidade para fazer o serviço, não precisando apostar num aventureiro amalucado, como em 1989.
Onde estão as semelhanças que repetem 1989, além da velha aliança que domina econômica e politicamente o país? Nos seguintes aspectos:
1) partindo-se das afirmações de Rubens Ricupero, no uso de uma rede nacional de televisão, que opera por concessão do poder público (portanto da sociedade brasileira), para propaganda indireta do candidato do governo, ferindo não só a lei eleitoral, mas também a lei de telecomunicações vigente no país;
2) partindo-se das afirmações de Ricupero, na manipulação das informações econômicas, escondendo-se dados cujo conhecimento são um direito constitucional dos cidadãos, violando-se, portanto, a legalidade e a cidadania democráticas;
3) partindo-se do noticiário dos jornais acerca das pesquisas de intenção de voto, no uso deliberado, por pesquisadores contratados pela campanha do candidato do governo, de afirmações que induzam o eleitor a uma opinião negativa sobre Lula (escolaridade, moradia, calote na dívida interna etc.), de mesmo teor das que foram usadas por Collor em 1989 ("o PT vai pôr os favelados no quarto de hóspedes de sua mãe", "o PT vai dividir seus eletrodomésticos e carros com os favelados e invasores de terra", "Lula vai confiscar a poupança" etc.);
4) partindo-se do que dizem articulistas, radialistas e jornalistas de televisão, na mesma manipulação ideológica de 1989, quando se dizia, como se diz hoje, que o PT está "infiltrado" em todo o aparelho de Estado (e até na Rede Globo), conspirando para a implantação do totalitarismo no Brasil;
5) partindo-se do horário político, na repetição, pelo candidato do governo, dos "slogans colloridos" sobre Lula; em 1989, "Lula vai tingir a bandeira nacional de vermelho"; em 1994: "Lula é a favor da inflação";
6) partindo-se dos noticiários, na contratação, proibida pela lei eleitoral, de uma assessoria norte-americana para orientar e conduzir a campanha do candidato do governo, à maneira do que fizera Collor em 1989;
7) partindo-se das alianças com empreiteiras, bancos, PFL, PTB e os demais "bandidos" para a montagem de um governo que, exatamente, impediu Fernando Collor de governar (ou Fernando Henrique acha que, tendo sido generosamente financiado por essa gente, iria governar sem eles ou contra eles?).
O episódio Rubens Ricupero não tem relevância, se for reduzido ao julgamento da pessoa do ex-ministro –não é sua religiosidade ostensiva nem sua hipocrisia desvendada por ele mesmo que estão em jogo, neste momento. Também não está em discussão saber que candidatura presidencial se beneficia ou se prejudica com o episódio.
O que está em discussão é a aparente naturalidade com que amplos setores da sociedade, além dos "bandidos" mencionados, encaram a ilegalidade estatal e a mentira eletrônica.
Está em discussão o modo de funcionamento do Estado brasileiro –este mesmo Estado que o candidato da situação afirma que pretenderia reformar. É a frágil democracia brasileira que está em pauta e não a superfície narcísica das personagens envolvidas no episódio.
Há uma farsa montada no palco da história brasileira, pretendendo repetir a tragédia de 1989. Muitos gostariam de usar a frase de Marco Antônio no "Julio César" de Shakespeare: "Brutus é um homem honrado", mas o clima é mais de Lamartine Babo: "Quem foi que descobriu o Brasil?\ Foi seu Cabral, foi seu Cabral\ No dia 22 de abril\ Dois meses depois do Carnaval".

MARILENA DE SOUZA CHAUI, 52, é professora titular do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo) e autora de "O que é Ideologia" e "Cultura e Democracia", entre outros livros. Foi secretária da Cultura do município de São Paulo (administração Erundina).

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