São Paulo, quarta-feira, 14 de setembro de 1994
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O piquete do Planalto

FREI BETTO

Há cerca de dois meses os metalúrgicos do ABC tentam negociar, dentro da câmara setorial automotiva, com os empresários, propondo a revisão de metas de produção e de emprego.
Partem da constatação de que houve produção acima do previsto no acordo. Portanto, nada mais lógico do que rediscutir a questão do emprego, à qual se vincula a demanda salarial.
O acordo tem uma cláusula de reajuste mensal, ajustado à inflação do mês anterior apurada pelo IBGE (covil de petistas?). Inclui ainda uma salvaguarda sobre rediscussão do item em caso de mudanças na política econômica.
Ora, nada mudou na atual política econômica no que concerne a preços e impostos. Mudou a política salarial. Tiraram o reajuste mensal. Os metalúrgicos não querem o aumento dos preços dos veículos. E a Anfavea concorda em antecipar a data-base de abril para novembro deste ano.
Assim, os trabalhadores comprovam que querem preservar o Plano Real. O abono reivindicado não seria incorporado agora, mas só na data-base. E não haveria repasse para os preços dos veículos.
Este acordo estava praticamente fechado na última sexta-feira. O governo solicitou que líderes sindicais e empresários fossem ao Rio no sábado para conversarem com o ministro Ciro Gomes. Lá, expuseram suas posições.
O ministro confessou que tinha dúvidas e precisava conversar com a equipe econômica. O acordo parou aí. O governo interferiu nas negociações.
Onde fica a livre negociação tão proclamada pela atual equipe econômica? Portanto, o governo é responsável pela greve, porque atropelou metalúrgicos e empresários, criando o impasse.
Desde 1992, os metalúrgicos do ABC firmaram um acordo na câmara setorial automotiva que fez aumentar a produção nacional de veículos e a arrecadação dos Estados e da União. O nível de emprego manteve-se estável. Portanto, o acordo beneficiou a todos. Agora, o governo tenta sabotar a câmara setorial.
A greve é um direito proclamado pelos papas e reconhecido como característica dos regimes democráticos. Consagrada pela Constituição (art. 9º, I, II), torna-se um recurso legítimo e legal quando esgotadas todas as outras formas de negociações.
Dizer que "a greve é política" é mero sofisma, como se houvesse mobilizações por demandas e direitos que não fosse política.
A questão é mais profunda: a elite brasileira –esses mesmos homens que sustentaram a ditadura militar e apoiaram o governo Collor, agora ancorados no barco neoconservador capitaneado por Fernando Henrique Cardoso– jamais aceitou na prática o que o direito reza no papel. Greve sim, desde que os operários não parem as máquinas e a produção não seja interrompida.
Arauto de uma proposta de governo que, na falta de escrúpulos, empresta uma roupagem progressista à pré-modernidade de um sistema econômico que nem sequer aceita a reforma agrária, FHC acusa Vicentinho, presidente da CUT, de "paixão política".
Ora, não seria esta uma virtude daqueles que se empenham em favor da coletividade? Não aos olhos dos donos do poder, os senhores da casa-grande que segregam a maioria da população na senzala da marginalidade, submetida ao arrocho salarial, obrigada a suportar o ônus da inflação real que, sendo ruim para o candidato do governo, fica escondida sob os cálculos mirabolantes dos índices oficiais.
A verdade é que esse setor do conservadorismo preferiria ver Lula vestido de macacão, marcando ponto na Villares, alvo de elogios por reconhecer "o seu devido lugar"...
Quando Lula ousou elevar a classe trabalhadora brasileira à condição de cidadania, dotando-a de instrumento político próprio, primeiro seus detratores lamentaram que ele não seguisse o exemplo de Lech Walesa. Pouco depois, o líder polonês seguia o rumo de Lula, tornando-se presidente da Polônia.
Buscaram então um exemplo no Brasil, erigindo Luiz Antônio Medeiros em modelo de sindicalista destituído de pretensões políticas –até que este se viu mordido pela mosca azul malufista, que sussurrou em seus ouvidos tornar-se governador de São Paulo.
Se Lula fosse oportunista, teria tentado impedir a greve dos metalúrgicos, fugindo ao risco de ter sua candidatura prejudicada pelo movimento. Porém, isso seria a negação de todos os ideais que ele encarna, sobretudo da razão mesma de seu partido e de sua candidatura: a organização e a emancipação da classe trabalhadora.
Não se trata de apenas ganhar uma eleição. Acima disso estão os princípios que impregnam sua candidatura de credibilidade e de transparência ética.
Há, pois, uma perfeita coerência entre a posição de Lula na disputa presidencial e a autonomia partidária do movimento sindical. A vida da coletividade está acima do resultado das urnas e não há vida se não há pão, nem pão se não há salário.
O que falta ao Brasil é governo e, ao governo, transparência ética. Enquanto o Palácio do Planalto mantiver o piquete sobre a câmara setorial, a greve –que não interessa aos trabalhadores e aos empresários– perdurará.

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