São Paulo, sexta-feira, 16 de setembro de 1994
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'Três Tenores' revive alegria de ser careta

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Seria de esperar que o mundo da ópera –aqueles vozeirões, os galãs obesos, as divas maiores ainda– estivesse morto e enterrado neste final de século. Não é o que acontece. O CD recém-lançado dos "Três Tenores" (Pavarotti, Domingo e Carreras) alcança grande sucesso de vendagem e envolve forte produção mercadológica.
Por quê? Durante muito tempo, a cantoria operística afastava o público de massas, e é sem dúvida estranho até hoje o esgoelar-se empostado das "grandes vozes" do teatro lírico. Subitamente, cantores estentóreos como Pavarotti vendem discos como água.
Podemos encontrar duas razões imediatas para essa vendagem descomunal. A primeira é que tanto Pavarotti quanto Placido Domingo, tanto Kiri Te Kanawa quanto Teresa Stratas, se dedicaram ao repertório popular. Tangos com Domingo, Gershwin com Kiri Te Kanawa aproximaram bastante os dois gêneros –lírico e popular.
A segunda é que os "Três Tenores" –e mais alguns coadjuvantes– têm se destacado nas grandes solenidades esportivas mundiais. Não há Olimpíada ou Copa do Mundo que possa prescindir de uma grande apoteose –balões coloridos, tochas, desfiles– acompanhada por um "La Donna È Mobile", por um "Libiamo, Libiamo si Lieti Calici", por um "Nessun Dorma" capaz de acordar defuntos.
As duas razões são boas, mas não convencem completamente. Pode-se entender, por exemplo, que, em uma solenidade internacional, como a festa de encerramento da Copa do Mundo, caiba recorrer à solenidade operística –solenidade apesar de tudo popularesca, feita desde o século 19 para grande consumo de massas. Pode-se entender, também, que o público acostumado a ouvir boleros com Nat King Cole sinta desejo de tomá-los a sério na voz potente de um Placido Domingo.
Mas isso não é tudo. Havia ótimas razões para o público detestar a cantoria dos tenores de ópera. A mais evidente é a do progresso técnico. Os cantores de ópera cantam desse jeito que conhecemos por um motivo bem simples: ausência de microfones. Durante séculos, o esforço de ser ouvido por platéias de teatro era resolvido, como se diz, "no gogó". O microfone e o disco permitiram um estilo de cantar mais intimista, menos "técnico" e "educado" aos cantores de massa.
Meu avô achava Bing Crosby um escândalo da modernidade. "Voz de bêbado", dizia. A força pulmonar, a clareza de elocução, a capacidade de projetar a voz contavam naquela época.
Ficou famoso, por exemplo, o dó altíssimo proferido pela soprano Nellie Melba (1861-1931) no primeiro ato da "Bohème" de Puccini. Diz uma rival: "A nota chegou como que flutuando, sobre o auditório do Covent Garden, deixou a garganta de Melba, saiu de seu corpo, todos e tudo, e passou pelo ar, como se uma estrela estivesse voando sobre nosso camarote, dirigindo-se, depois, para o infinito..."
Noto de passagem que Nellie Melba foi a inventora do famoso "Pêssego Melba" –sorvete de creme com pêssego em calda. Só que na invenção dela não tinha sorvete. Exatamente para preservar a voz, não quis tomar sorvete e encomendou pêssego em calda com creme chantilly, e isso acabou virando a sobremesa com seu nome.
Seja como for, estamos tratando de "vozes lendárias": de dós superpotentes que flutuam como pérolas no ar. Falta de microfones, eis tudo. Do mesmo modo, os grandes virtuoses do piano só realizaram proezas de circo em matéria de agilidade digital porque à época não havia computadores capazes de sintetizar, na gravação, os sons exigidos na partitura. Hoje em dia, qualquer esbarrão, qualquer nota em falso, pode ser corrigida no estúdio.
E, mesmo assim, triunfa os vozeirões de Pavarotti, Carreras e Domingo. Continuo perguntando: por quê? "Per chè, signor, per chè?", como dizia a "Tosca" de Puccini.
Imagino duas outras razões, mais profundas que as primeiras acima aventadas. Uma é a de que, sem saber, as massas aspiram cada vez mais a um maior volume de som. Ao contrário do que acreditava meu avô criticando Bing Crosby, a tendência para o intimismo (que teve seu auge num João Gilberto, por exemplo) não prosseguiu sem contestações.
Apesar do volume de som garantido pelos amplificadores, a vontade foi sempre de berrar mais e mais alto. E o que são Janis Joplin ou Freddy Mercury diante de Pavarotti? O impacto puramente quantitativo do som, da voz, do tom, do grito, garante muito do sucesso dos "Três Tenores".
A outra razão é mais difícil de descrever. Refere-se a uma mudança de gosto ocorrida durante os anos 80. Penso no sucesso de um Arnold Schwarzenegger, por exemplo. Quem seria capaz de prever, uma vez encerrado os clichês dos anos 50, a volta do homem-músculo como artigo de consumo de massa 30 anos depois?
E os concursos de "top models" revivendo o velho fascínio dos concursos de misses de 1955? Reviveu-se a alegria de ser "careta" –é claro que sob uma feição mais paródica e deslocada do que antes. A ópera, que era coisa de excêntricos e minorias na década de 70, torna-se de novo fenômeno de massa (revitalizada pelas canções napolitanas, por Gershwin e Cole Porter) nos anos 90.
Para lançar uma hipótese radical, trata-se de um subproduto de culto ao corpo, da aeróbica. Não é à toa que o atletismo vocal de Domingo, Carreras e Pavarotti sucede sempre às exibições olímpicas e aos campeonatos de futebol.
É como se uma cultura oficialesca rendesse homenagem, sem saber, ao secreto oficialismo de um modo de vida bem-comportado, saudável, tradicional, "antijunkie", que é versão moderna das repressões arcaicas da civilização sobre os prazeres do corpo.
Não é à toa que Madonna se apresenta ao mesmo tempo como devassa e esportiva. É o neo-academicismo. Contente face às repressões que contesta. Ascético no culto ao corpo, no culto a um sexo atlético, esportivo, limpo.
A ópera, com sua conotação ítalo-católica, cai bem no mundo de Madonna. O neo-academicismo celebra os "Três Tenores". Não pretendo com isto negar a musicalidade extrema desses grandes artistas. Não critico o CD, que às vezes acho ridículo e às vezes me agrada muito. Tudo é uma questão de humor. Mas noto apenas que há algo desafinado em toda a cantoria.

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