São Paulo, sexta-feira, 16 de setembro de 1994
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Significado do teste eleitoral

FLORESTAN FERNANDES

A candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva explicitou seu significado como teste histórico-sociológico. Isso já se evidenciara nas eleições anteriores. Mas a repetição do processo sob a pressão dos mesmos fatores, e nas condições criadas pelas novas tendências de absorção do Brasil pelos dinamismos "globais" da expansão renovada dos Estados Unidos na América Latina e do chamado "neoliberalismo", conferem à presente eleição muitas peculiaridades.
As classes dominantes e suas elites abrem seu caminho de forma defensiva, lançando sobre a população pobre e trabalhadora os custos econômicos, sociais, culturais e geopolíticos das transformações.
O passado colonial, neocolonial e a situação de dependência ressurgem com enorme vitalidade, pois esse é o trunfo de que os de cima dispõem para manter ritmos macrossociológicos de crescimento. Impedir que as classes espoliadas construam alternativas próprias vem a ser mais essencial que no passado.
No "salve-se quem puder" da burguesia, vale tudo. Fernando Collor representou um tiro no escuro que se voltou contra os que o apoiaram sabendo o que faziam. Fernando Henrique Cardoso parece-lhes a tábua de salvação. Em consequência, para os parceiros nativos e estrangeiros, metidos no mesmo barco, eleição quer dizer também conspiração, para manter e reforçar o "status quo", dentro de uma moldura de ganhos e perdas imprevisíveis.
As avaliações das intenções eleitorais estouraram como uma bomba. Lula, o PT e os seus aliados da Frente Brasil Popular adquiriram o caráter de ameaça intolerável. Lula corporificou –apesar de seus esforços em contrário– o mal em si. Destruí-lo como candidato à beira da vitória exigiu composições partidárias esdrúxulas, que envolvem um retorno à República Velha, em matéria de práticas políticas.
E Lula, como símbolo desse mergulho cego no passado, posto sob a égide da "modernização", subiu à tona como um teste avassalador. Se ele vencer, a soberania popular prevalece e, com ela, a universalização da cidadania e o "voto popular" como vetor da evolução política.
Vemos, assim, formar-se um drama político, que mistura arcaico, moderno e ultramoderno. Trata-se de uma articulação explosiva. Na República Velha, o arcaico selecionava o moderno e amordaçava as vozes que gritavam por alguma espécie de esperança ou de desconfiança civil.
Nos dias que correm, não só Lula objetiva as impulsões de mudança social, procedentes de baixo; estes ostentam forças inconformistas e insurgentes e se organizam para vergar o arco que associa pseudo-social-democratas, pseudoliberais e conservadores intransigentes.
Ganhe ou não as eleições, Lula tornou-se um marco de referência histórica. É o primeiro político de origem humilde e operária que ascendeu, pela segunda vez, e não só representa: fala em nome do povo, com voz que traduz os interesses, os valores e as aspirações dos vários estratos dos despossuídos, desenraizados, dos trabalhadores do campo e da cidade, das camadas mais conscientes das classes médias baixas e dos radicais da pequena burguesia.
Os candidatos dos partidos da ordem, perfilhando um procedimento "esperto", padronizaram e centralizaram suas promessas eleitorais –educação, combate à miséria, ao desemprego, habitação, saneamento etc. Ouvindo-os ou lendo seus discursos, fica a impressão de que são homogeneamente pela reforma social. Eles são anzóis de pescar trouxas. Eleitos, deixarão tudo como está, já que aí se encontra a fonte de seu poder e de barganha eleitoral.
Com Lula isso não sucede. Ele aprendeu com suor, sangue e lágrimas a necessidade vital dos sonhos e esperanças do povo. E por trás dele estão o PT e seus aliados, que abjurariam a mutação de forças sociais saídas das massas anômicas e das classes trabalhadoras. O símbolo possui consistência e delimita o grau de liberdade que o candidato desfruta, como pessoa e como político.
Suas promessas eleitorais são imposições de uma situação histórica que clama por alteração profunda. Se puderem ser colhidas por meio de eleições, tanto melhor. Caso contrário, mais cedo ou mais tarde elas se resolverão por outras vias.
Na verdade, o Brasil se aproxima do momento decisivo no qual a alternativa é clara: democracia autêntica, como etapa de uma evolução de média duração, ou revolução. Há certa ambiguidade entre o que Lula significa e o clamor das massas populares e dos assalariados.
Acima dessa ambiguidade, todavia, vem o peso daqueles para os quais atingimos um ponto no qual as coisas não poderão continuar como estão. Nessa confluência, Lula é um indicador das potencialidades democráticas da sociedade brasileira e da velocidade dos conflitos que já são visíveis ou operam de modo latente.
Os últimos são mais potentes. Fraturam a sociedade sem que os donos do poder percebam. As implicações políticas das propostas eleitorais de Lula fundem os dois tipos de conflito e permitem um avanço histórico que, ao eclodir, oferece um respiro aos que se iludem ao pensar que poderão manter tão larga parte do nosso antigo regime quando tão vasta parte dos que sofrem a repudiam e querem construir uma nova sociedade. Lula compreendeu a essência dessa realidade dramática e bate-se por sua superação.

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