São Paulo, sábado, 17 de setembro de 1994
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A história oficial

CLÓVIS ROSSI

SÃO PAULO – Não é preguiça, não. Acontece que há uma fatia do leitorado cuja alma parece atormentada de tal forma pela realidade brasileira que vale a pena deixar o espaço para ela.
Por isso, reproduzo trechos de duas das cartas que são mais eloquentes sobre esse estado d'alma.
"Como parte de uma geração egressa dos anos de ditadura, que não se limitou a esperar passar mas atuou com o desígnio de tomar a história em suas mãos, que acreditou no sonho de uma sociedade mais justa, vejo a nós mesmos como figuras de um cenário que não nos cabe, como espécimes em extinção, replicantes da história, a meio caminho entre a lucidez e a incapacidade de exercê-la".
É da professora Mônica Eustáquio Fonseca, de Belo Horizonte (MG).
Do bairro do Butantã, São Paulo, Darci Terezinha de Luca escreve: "A verdade vira mentira e a mentira vira verdade. Será que só eu estou tão confusa e me sentindo idiota? E só o meu bolso furou?"
Mais adiante: "Parece que justiça, honestidade, verdade, cidadania, direitos -virou tudo pecado, falar disso ou nisso se tornou 'politicamente incorreto', mala sem alça, antigo, conservador".
Não sei se serve de consolo, mas fica claro que há pelo menos duas pessoas confusas e que a espécie em extinção conta com pelo menos duas integrantes, ainda que, suponho, uma não conheça a outra.
O que se pode dizer para esse pessoal? Eia, zus, pra frente, Brasil? Não dá. Vira e mexe, o Brasil me faz lembrar a Argentina dos anos de chumbo. Toda quinta-feira, pontualmente às 15h30, as "madres de Plaza de Mayo" faziam sua silenciosa manifestação de protesto pedindo por seus filhos ou parentes desaparecidos.
A grande maioria dos portenhos passava ao largo, muitos mudavam de calçada para evitar ter que olhar, ainda que de soslaio, aquelas senhoras de rosto sulcado pelo sofrimento e lágrimas ressecadas pela impotência. Fugir delas não adiantou. Cedo ou tarde, a "história oficial" acaba sendo atropelada pela história real e até os indiferentes se vêem obrigados a encará-la. Talvez um dia aconteça também por aqui. Talvez.

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