São Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 1994
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A ilusão do imposto único

DALMO DE ABREU DALLARI

Uma proposta de emenda constitucional instituindo o imposto único no Brasil seria inconstitucional e não poderia sequer ser votada pelo Congresso Nacional. Além disso, embora seja tentadora a idéia de substituir todo o complicado sistema tributário brasileiro por um só imposto isso não seria o mais conveniente, como não será difícil demonstrar.
A par disso tudo, é bom que se saiba que a proposta do imposto único é muito antiga e já foi apresentada várias vezes, na França, nos Estados Unidos e no Brasil, nunca tendo sido levada muito a sério pelos teóricos em finanças e tributação nem se chegando a cogitar de sua efetiva aplicação.
Quanto ao aspecto constitucional, é importante lembrar que a Constituição vigente define o Brasil como República Federativa. E no artigo 60, parágrafo 4º, estabelece que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: 1ª forma federativa de Estado".
Ora, é impossível existir federação sem que as unidades federadas gozem de autonomia política, administrativa e financeira, o que implica a competência para lançar e arrecadar os seus próprios tributos.
Assim, portanto, a implantação do imposto único estaria abolindo o federalismo, que é um dos pontos imutáveis da Constituição brasileira. E por isso uma eventual proposta de emenda constitucional em tal sentido não poderia, sequer, ser objeto de deliberação.
Ainda que não houvesse esse obstáculo jurídico intransponível, existem fortes argumentos de ordem prática a favor da multiplicidade e diversidade de tributos. Num país com a dimensão territorial do Brasil e com enorme diversidade de condições da administração pública são também extraordinariamente diferenciadas, assim como a capacidade contributiva do povo.
Por esse motivo, é mais justo e conveniente que o sistema tributário seja descentralizado, em termos de imposição e de arrecadação, para ser mais adequado a cada situação. Isso contribui também para a democratização do sistema, pois o cobrador e aplicador dos recursos tributários estará mais perto do povo que paga e assim poderá ser mais facilmente controlado pelos contribuintes.
No Brasil existe excesso de padronização, que deverá ser oportunamente extirpado por meio de emenda constitucional, dando-se mais flexibilidade para a escolha das fontes de recursos tributários pelos Estados e municípios.
O federalismo simétrico é um equívoco que precisa ser corrigido, nesse e noutros pontos, mas o aperfeiçoamento da organização e do funcionamento do Estado deve ser feito respeitando as normas da Constituição, pelo processo de emenda e com as limitações que ela prevê. E, naturalmente, tendo em conta as características do Brasil.
Por último, é oportuno recordar que no século 18 o economista François Quesnay, um dos principais representantes da escola dos chamados fisiocratas, sustentava que a produção agrícola era a única que propiciava, realmente, uma renda líquida e por isso propunha o imposto único, tendo por base essa atividade.
Mais tarde, no século 19, o jornalista e economista norte-americano Henry George propôs o imposto único sobre o valor da terra, conforme teoria exposta em seu livro "Progress and Poverty", publicado em 1879.
Um dos mais fervorosos adeptos dessa teoria, batizada de "georgismo", foi Monteiro Lobato, que no ano de 1948 publicou pela editora Brasiliense um folheto intitulado "O Imposto Único". Lobato sintetiza a "maravilhosa solução" proposta pelo teórico norte-americano: "Henry George não guilhotina ninguém, não mexe em nada; não altera em nada a ordem social. Limita-se a substituir todos os atuais impostos diretos e indiretos, que são monstruosos porque recaem sobre a produção (e portanto assumem a forma de "castigo ao trabalho"), por um só: o Imposto sobre o Valor da Terra, quer dizer, o imposto sobre o bem social que está na mão dos particulares (o grifo é do próprio Lobato). Só isso".
Como se vê, a idéia do imposto único é antiga e essencialmente a mesma, embora apresente variações quanto a aspectos particulares.
No Brasil ela é juridicamente inviável, o que torna de interesse secundário qualquer discussão sobre a forma de usá-la.
É mais consequente discutir um novo sistema tributário, sem perder de vista as exigências do federalismo e da justiça social e sem a ilusão de que basta isso para eliminar a sonegação, a corrupção e o mau uso dos recursos financeiros.

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